Reality culinário explora a boçalidade de quem faz e de quem vê

Os rostos do “MasterChef”: Henrique Fogaça, Paola Carosella, Erick Jacquin e a apresentadora Ana Paula Padrão (foto: Divulgação)

Escrevo este texto na noite de terça (5/12), durante a exibição da final do “MasterChef”, com a TV desligada. Obviamente, não vi o programa. Nem outro episódio de qualquer temporada produzida no Brasil. Não tenho a menor ideia de quem sejam os competidores. Sei que os dois finalistas se chamam Pablo e Francisco porque precisei abrir o site da Band em busca de fotos de divulgação. Só volto a assistir algo do gênero se alguém me pagar pela tarefa. Mas eu sei do que estou falando.

Esse tipo de atração não tem nada a ver com gastronomia – trata-se apenas do tipo mais raso de teledramaturgia, como o velho “Show de Calouros” de Silvio Santos. As competições culinárias e os reality shows em geral fazem sucesso porque despertam o boçal que existe dentro de nós. Quem cria, quem produz, quem conduz, quem participa e quem assiste: todos unidos em uma brincadeira sádica que já me cansou.

Antes de meu filho mais novo nascer, eu tinha tempo e disposição para acompanhar coisas do gênero. Assisti a várias temporadas de “Hell’s Kitchen”, com o canastrão Gordon Ramsay soltando fogo pelos olhos, vi a versão norte-americana do próprio “MasterChef”, além de algumas produções menos cotadas de países como Austrália e Canadá.

Meu predileto era um programa chamado “Man v. Food”, ainda mais primitivo. Nele, um sujeito franzino percorria os grotões dos Estados Unidos para comer de forma desesperada em competições ridículas. Baldes de milk-shake, asinhas de frango às centenas, hambúrgueres da altura de um pônei, petiscos desse naipe. Entretenimento garantido. Se o cara conseguisse comer todas as 20 dúzias de ostras, o espanto: “Mano, por que alguém faz isso??”. Se desistisse na dúzia final, o profundo desdém: “Panaca, vai ter piriri à toa”.

Voltando ao “MasterChef”, eu cansei. Não foi nenhum surto de santidade: cansei porque percebi que assistia sempre ao mesmo programa.

A estrutura dramática desse tipo de atração é simplória e se repete semana após semana, temporada atrás temporada. Os participantes não são escolhidos pelo currículo como cozinheiros, mas pelo temperamento: o explosivo, o brincalhão, a sonsa, a esquisita, o mal-humorado etc. São perfis de personagens que se encaixam no esquema de roteiro que a produção já tem pronto.

Quem liga a TV em um reality culinário não quer aprender a cozinhar. Tanto faz se queimou o beef wellington do gordo simpático, ou se a menina que chora esqueceu o açúcar do merengue. O espectador está faminto pelo cardápio de maldades oferecido nos bastidores. As intrigas, as panelinhas, os conchavos.

A competição em si não avalia talento nem perícia técnica, mas a reação a situações de estresse. Postos contra a parede, os concorrentes entregam o que o povo quer ver: insegurança patológica, desequilíbrio emocional, deslealdade, crueldade, conspiração, sabotagem.

Os vencedores e concorrentes de destaque tornam-se influenciadores digitais, uma praga da atualidade. Mas há quem sonhe com esse tipo de fama.

Para a gastronomia, é um desserviço. O “MasterChef” e seus congêneres transmitem a noção de que a cozinha é um circo e uma selva. Vou roubar as palavras de Raphael Despirite, chef do restaurante Marcel, grande cozinheiro e guru máximo do Facebook: “Cozinhar não é competir, não é picar cebola mais rápido que o amiguinho, cozinhar é um ato de generosidade.”