“Foodies” habitam um universo paralelo jeca e ignoram o Brasil real
Fui atacado, no Painel do Leitor de 14/4, por ter dito o óbvio na minha coluna em Comida no dia anterior: não existe artesanato na indústria alimentícia. O termo “artesanal”, usado por pequenos produtores – não raro pelos grandes também – para valorizar sua mercadoria, é apenas estratégia de marketing: tratam-se de produtos destinados ao público AAA, feitos por indivíduos igualmente abastados, com business plan, maquinário de ponta e toda a informação que se pode obter online e em viagens ao exterior.
Artesanato é a correntinha chumbrega do hippie de Jericoacoara. Isso é negócio, é capitalismo. Não há por que se incomodar com tal constatação.
Mas a leitora em questão, ligada à promoção dos tais “artesanais”, é prisioneira de uma realidade paralela. O mesmo universo que habitam 95% dos jornalistas, influenciadores, promotores e demais profissionais ligados à gastronomia. Preciso chamá-los de “foodies”, palavra que eu abomino.
No universo paralelo dos “foodies”, Copenhague é mais perto da avenida Paulista do que Itaquera. Belém também está logo ali – mas só a parte que interessa, aquela que nos brinda com comidas exóticas e frutas perfumadas. O Pará medieval, onde a vida de uma pessoa vale menos do que uma cuia de tacacá, está fora do mapa “foodie”.
Em resumo, a realidade “foodie” é composta por ilhas idílicas de fazendas-modelo e excelência culinária. A locomoção de um ponto a outro é feita por teletransporte, para evitar o cenário feio e cafona da realidade real.
O “foodie” dá as costas para o Brasil de verdade.
Ele poderia trocar, por exemplo:
Avocado toast…
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…por pão na chapa com margarina |
Segunda sem carne… | …por virado à paulista |
Um tomahawk dry-aged… | …por um jantar na churrascaria rodízio (tem desconto à noite) |
Croquetas de jamón do Tanit… | …por um balde de minicoxinhas do Ragazzo |
Maniçoba “importada” de Belém… | …por uma feijoada com paio Aurora |
Bresaola curada na casa… | …por mortadela Marba |
Hambúrguer wagyu no brioche… | …por um rolê no Mac |
Futuro Refeitório… | …por um quilão qualquer |
A culinária plant-based como tendência sustentável… | …por um steak de frango do Giraffa’s |
Food truck… | …pela Kombi do dogão prensado |
Batatas rústicas com alho e alecrim… | …por fritas com provolone ralado e bacon |
Suco verde… | …por Tang sabor limão |
Kombucha… | …por Dolly guaraná |
Noodle bar… | …por Nissin Miojo |
Triple IPA… | …por litrão em promoção |
Chips ingleses de batata com sal marinho e vinagre de malte… | …por Ebicen |
Pizza napolitana certificada… | …pela pizza à moda do chef, que leva palmito, tomate seco, bacon, calabresa, atum e requeijão (+ borda recheada de cheddar e Dolly 2 litros de brinde) |
Pato no tucupi… | …por frango de televisão |
Gunkamaki de uni… | …por temaki de salmão com cream cheese |
Gelato… | …por picolé Kibon |
Pão de fermentação natural e longa… | …por bisnaguinhas Seven Boys |
Ovo perfeito… | …por ovo cor-de-rosa |
Growler… | …por torre de chope |
Porchetta… | …por pernil de estádio |
Sardinhas portuguesas em tomate e azeite extravirgem… | …por torta de liquidificador de atum ralado peruano |
Kefir… | …por Danone grego |
Lardo… | …por gordura vegetal hidrogenada |
Pad thai… | …por China in Box |
Mel de abelhas nativas… | …por muito açúcar |
Ganache de chocolate 70%… | …por brigadeiro de Nutella e leite Ninho |
Vinho natureba laranja… | …por lambrusco tinto doce |
A coluna da esquerda é o universo paralelo “foodie”. A da direita, o Brasil real. Não é preciso sequer visitar as periferias para conhecer esse país que come mal à beça: basta ter um filho e fazer um esforço para conviver com os pais dos coleguinhas de escola. São poucas as festinhas de criança que seguem a etiqueta “foodie”. Dar uma volta num shopping qualquer dá menos trabalho – e também oferece um painel do Brasil verdadeiro.
O “povo da gastronomia” não percebe a pequenez e a irrelevância desse meio. Uma pena. Divorciado da realidade, ele enxuga gelo com ações sociais de alcance limitadíssimo. Mais que quixotesco, cínico: no fundo, todos sabem que o ego do “foodie” é o grande beneficiado.
O povo brasileiro nunca vai se alimentar de orgânicos e biodinâmicos. Está pouco se lixando para as tendências gastronômicas. Não tem dinheiro nem conhecimento para consumir alimentos processados “artesanais”. Fazer farinha de mandioca para os ricos dos Jardins não vai mitigar a miséria na Amazônia.
Se quisesse realmente fazer diferença, o “foodie” precisaria sair de sua realidade paralela de vez em quando. Para melhorar a alimentação do brasileiro sem tentar empurrar-lhe costumes caros e muito distantes de seu cotidiano. Existem poucas e boas ações nesse sentido, como o trabalho da chef Janaína Rueda com a merenda nas escolas de São Paulo e o projeto da ONG Orpas nas quebradas da zona sul.
O Brasil é um país jeca, atrasado e injusto, e a péssima alimentação é só um aspecto dessa realidade feia. Ao se refugiar em uma Nova York virtual, o “foodie” consegue ser ainda mais jeca.