Churrasqueiro ogro é a caricatura masculina da vez
Dia desses, parei no açougue ao lado de casa. Entrei para comprar carne, mas acabei levando uma caixa de aço inox, do tamanho de um estojo escolar, própria para defumar alimentos. Para abastecer o brinquedinho novo, lascas de carvalho americano – a madeira havia sido parte de um barril usado para envelhecer bourbon, de acordo com a embalagem.
Defumação caseira é moleza, desde que você tenha alguns equipamentos. Nada específico, além da tal caixinha: eu usei uma panela grande e larga de ferro, uma grelha de assadeira e uma tampa de churrasqueira portátil que se encaixa na minha panela. Gambiarra total. A caixa com serragem fica dentro da panela e é aquecida indiretamente. Apoiei a grade na borda da panela, como se fosse mesmo uma churrasqueira, e tampei para reter a fumaça. Sobre a grelha, pus um carré de porco previamente temperado. Duas horas e meia em fogo médio, e eu tinha a carne ao ponto, suculenta e com gosto de Jack Daniel’s. Como você pode ver na foto abaixo.
Foi nesse momento que eu me dei conta do papel que estava representando. Eu era o clichê do homem-hétero-carnívoro-churrasqueiro-defumador. Para uma comida mais viril, só se eu a preparasse sobre uma moto Harley-Davidson.
A caricatura masculina da vez é o especialista em churrasco. Melhor, em barbecue. Melhor ainda, em American BBQ. Se o cara tiver um diferencial regional – o molho à moda de Kansas City ou as costelinhas como em Memphis – mano do céu!, ele é rei.
Não estou tentando de forma alguma me distanciar dessa imagem. Seria ridículo. Qualquer um que pesquise meu nome na internet vai achar abundante evidência da minha conexão com esse universo do macho churrasqueiro. Eu tenho um blog chamado “Cozinha Bruta”, por Tutatis! Isso não significa que eu esteja confortável com o rótulo.
O churrasco, típico hobby de tiozão inofensivo, de repente se tornou um show de testosterona. Facas gigantes, aventais de couro, bonés, barbão, correntes e polias, rock pesado, motocicletas, cerveja aos baldes, defumação, adoração por bacon, comida em porções pantagruélicas, nenhum espaço para alguma sutileza ou delicadeza, animais inteiros assados no fogo aberto. Só falta ter campeonato de arroto e cuspe à distância.
É uma mistura de “Mad Max” e Hell’s Angels com patrocínio de grandes indústrias. O macho churrasqueiro da década de 10 se orgulha de ter uma dieta quase exclusivamente carnívora, gaba-se das habilidades como açougueiro, gostaria de poder abater o próprio alimento. Caçar, se a legislação permitisse. Ele não demonstra qualquer preocupação com o tratamento dado às cabeças de gado que abastecem o banquete – o questionamento pode desagradar ao patrocinador. Além do mais, qual o sentido de ter compaixão pela comida?
Note bem: adoro carne, mas detesto o pragmatismo levado às últimas consequências. O espírito crítico sepultado pelo instinto de sobrevivência.
No fundo, todo esse pessoal sabe que representa um personagem para tentar ganhar o sustento em tempos de crise. Sabe que cada churrasqueiro barbudo é uma engrenagem da máquina pilotada por executivos engomados em prédios de aço e vidro da Berrini. O estilo de vida, a atitude, o espírito rock ’n’ roll… é tudo discurso publicitário vazio. Tudo pose. E olha que evitei até agora o uso da expressão “hipster”.
A ascensão recente e avassaladora do feminismo – um fenômeno social positivo em todos os aspectos – desnorteou uma boa parcela da população masculina. O macho precisa encontrar um jeito de fazer machice sem assediar as mulheres, sem fazer bullying com os gays e sem manifestações explícitas de agressividade. Enquanto isso não acontece, ele resolveu brincar com os coleguinhas. As churrascadas ogras, assim como o culto à cerveja artesanal e as barbearias gourmet, são uma versão moderna de coisas meio ridículas como a maçonaria, as confrarias de vinho e as mesas de pôquer. Mulheres são admitidas, mas estão em franca minoria.
O macho atual quer parecer macho. A figura do metrossexual declinou rapidamente e deu espaço para o leão-de-chácara barbudo e tatuado. Isso teve seu impacto na indústria de bens de consumo. Caiu a venda de lâminas de barbear, mas cresceu a de aparelhos elétricos para aparar a barba – muito mais caros, diga-se. O lenhador churrasqueiro é garoto-propaganda de frigoríficos, de utensílios de cozinha, de eletrodomésticos e até de maquinha de passar cartão. A impagável sátira do comediante Marco Luque em um comercial (assista aqui) define esse homem caricato muito melhor do que estas linhas.