Mistério: onde o peru de Natal passa o resto do ano?
Um dos fenômenos mais intrigantes da sociedade de consumo moderna é o veloz surgimento dos perus e superfrangos no balcão de congelados do supermercado quando o Natal se aproxima – assim como seu igualmente célere sumiço nos primeiros dias do ano novo.
Onde estão todas essas aves nos outros 11 meses do ano?
Para começar, por que diabos comemos peru apenas na época do fim de ano? Por que nos submetemos a essa tragédia gastronômica anunciada – carne ressecada e sem gosto – somente para respeitar uma tradição? (Essa história da carne sem graça é meio mito de quem não sabe cozinhar bem. Trataremos melhor do assunto em outra oportunidade.)
Fui pesquisar. Cristãos, podem torcer o nariz: o peru, assim como metade dos costumes natalinos, não tem nada a ver com o nascimento de Jesus. O cardápio da ceia remonta a um festival de inverno germânico chamado “yule”, que já existia antes do Natal e que foi incorporado pelo catolicismo na barganha por almas loiras e de olhos azuis.
Como assim, se o peru é uma ave das Américas? Chegaremos lá.
A celebração do “yule”, segundo a narrativa cristã, era uma orgia de puro descontrole, com abuso de álcool e outras substâncias, sacrifícios e fornicação à vontade. Precisamos separar o ranço ideológico daquilo que realmente faz sentido.
O festim nórdico, como todas as festas de dezembro, celebrava a passagem (leia: sobrevivência do grupo) pelo solstício de inverno no hemisfério norte. O cardápio se resumia ao que está disponível no período: vegetais que nascem sob a terra (como nabos e beterrabas), conservas (bacalhau, embutidos, arenque, picles), frutas secas ou protegidas do frio por carapaças espessas e duras (como a castanha-portuguesa, uma guloseima invernal em toda a Europa.
Havia sacrifício animal, sim. O mais importante deles era o do “sónargǫltr”, o javali de “yule” – tradição que deu origem ao presunto tender. E havia uma grande caçada para abastecer o banquete. Pense: você não sabe se vai ter comida até o réveillon… vai abater seus dois boizinhos para encher a pança do cunhado? Não, o povo saía à floresta quando queria carne. De mais a mais, os animais selvagens ficam mais vulneráveis quando também correm o risco de passar fome.
Assim, o banquete natalino (ou “yulino”) tinha uma variedade grande de carnes de caça e pesca: veado, lebre, salmão, alce. E principalmente aves, como faisão, pavão, codorna, perdiz, ganso e pato selvagem.
Quando a América foi conquistada, o mundo já era um pouco menos primitivo. O peru foi prontamente trazido pelos colonizadores e se adaptou muito bem ao clima. Na Inglaterra, ganhou enorme prestígio e logo superou o pato e o ganso como o assado oficial da ceia. O costume se espalhou para Portugal e, de lá, para o Brasil.
É por isso que comemos peru no Natal. Mas onde ele fica no resto do ano?
Bom, a indústria tem capacidade e tecnologia para congelar e estocar as aves imediatamente após o abate, para vendê-las só em dezembro. Nossa produção de perus é irrisória: são 29 milhões de animais (estimativa da FAO) contra 1,3 bilhão de frangos ao ano.
O peru inteiro congelado quase só aparece em dezembro, mas o peito – justamente a carne mais seca e sem graça – é vendido para jihadistas dietéticos durante os outros meses. Tanto na forma congelada quanto em embutidos. As coxas e as asas, que ninguém preza demais, aparecem a preços ótimos de vez em quando. Elas são muito saborosas, eu costumo comprar. Algumas partes do país – principalmente no Nordeste – têm o costume de comer o pescoço como petisco de boteco.
De resto, o excedente da produção de peru vai para presuntos, salsichas, mortadelas, linguiças (a tal “carne mecanicamente separada de aves” que consta na lista de ingredientes), almôndegas, hambúrgueres e ração animal. Nada é desperdiçado.
Ou você acha que iam deixar o bichão ciscando de boa de janeiro a novembro?