O restaurante que nunca existiu e a morte da crítica gastronômica
Se você não passou os últimos dias em Marte, deve ter ouvido falar da história do restaurante falso que chegou ao topo do ranking do Tripadvisor em Londres. Eu, que estive boa parte desse tempo no hospital – removendo a vesícula biliar e duas bolas de gude dentro dela –, só pude me inteirar agora do caso.
Em resumo, um jornalista que era pago por donos de restaurantes para escrever resenhas elogiosas cansou da lida e mudou de lado. Inventou um restaurante de araque, com site bonitão e o escambau, pediu ajuda aos universitários e transformou a farsa no lugar mais cobiçado de Londres. Depois, escreveu a história para a revista “Vice”.
Oobah Butler, o tal jornalista, avacalhou o sistema de avaliação do Tripadvisor (que, cá entre nós, sempre foi um esquema “me engana, que eu gosto”). Mais que isso, ele expôs a completa falta de uma referência crítica na área da gastronomia.
Você, que procura indicações de restaurantes, não está só. Seria melhor que estivesse, porém. O excesso de informação provoca ruído e confusão. Esquemas como o das resenhas pagas embaralham todas as cartas na mesa, para nivelar o bom e o ruim. Mas existem indícios bem mais sutis da morte da crítica gastronômica. Não se pode mais confiar em ninguém – não do jeito que se confiava antes.
Não muito tempo atrás, os críticos gastronômicos eram seres reclusos. Evitavam aparecer em público para que os donos de restaurantes não marcassem seus rostos. Eles – ou seus patrões – pagavam o que comiam e bebiam e trabalhavam com método para emitir uma opinião técnica e isenta. Sei que nunca foi bem assim, mas vamos com calma.
A internet deu um carrinho na canela da crítica oficial. A possibilidade de qualquer um escrever o que quiser é só a face mais visível desse fenômeno.
Diluída em um mar de opiniões, a opinião de quem entende passou a interessar muito menos. As plataformas wiki (ou colaborativas) venderam-se como uma alternativa mais democrática do que a opinião dos “sábios”. Para a maioria das pessoas, tanto faz.
O esquema mudou radicalmente nas redações, cada vez mais enxutas. Setores menos decisivos para os rumos da humanidade, como a gastronomia e o turismo, sentiram primeiro o baque.
A verba para a produção independente foi cortada. Jornalistas de gastronomia tornaram-se dependentes de suas fontes, os donos de restaurantes e seus assessores de imprensa. Convites para jantares e fotos de divulgação tornaram-se a regra. Todo mundo é amigo de todo mundo no meio – menos, é claro, dos desafetos.
A promiscuidade contamina a produção. Não existem resenhas isentas: o crítico é conhecido do dono, quando não é amigo ou inimigo. Visitas de surpresa são cada vez mais raras, pois é o avaliado que vai pagar a conta. Mesmo quando se levam a cabo os procedimentos corretos, a rede social é um viés forte – refiro-me à rede social das pessoas envolvidas no ramo da alimentação.
A primeira boa notícia: sempre foi mais ou menos assim. O que a internet fez foi derrubar um tanto da hipocrisia que havia no ramo.
Pense em um crítico gastronômico clássico. O sujeito chega sozinho ao restaurante. Pede metade dos itens do cardápio e passa o jantar inteiro tomando notas. Não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes para adivinhar que não se trata de um cliente comum.
Isenção e objetividade nunca existiram de fato no jornalismo gastronômico. Não é ciência exata, não dá para se guiar por planilhas infalíveis. Por mais correto que seja o autor, ele sempre se pauta por suas preferências pessoais.
Isso nos leva à segunda boa notícia: ainda é fácil obter informação de qualidade (sobre restaurantes e tudo o mais) quando você larga mão de rankings absolutos como o Tripadvisor e o Michelin, cada um com seus vícios e virtudes. Só dá um pouquinho de trabalho. Leia muito e identifique os autores que têm preferências semelhantes às suas. Ame-os e abandone-os quando o amor não for mais correspondido. Não perca tempo odiando o resto.