Como São Paulo matou suas cantinas
Quando eu era pequeno demais para me lembrar das coisas com clareza, minha família frequentava uma cantina no Largo da Concórdia. A cercania já não era propriamente bucólica, mas estava longe da distopia urbana que é o Brás atual. O restaurante ficava em uma casa antiga, com chão de ladrilho hidráulico e pé-direito alto (ou assim eu o imagino). Nossa mesa pedia antepastos variados, lasanha, nhoque e fusilli. Eu ia sempre de nhoque, com molho vermelho encorpado, intenso, delicioso.
Aquele molho era o padrão de excelência que minha mãe perseguia e, de vez em quando, alcançava. Uma dia, paramos de ir porque o restaurante simplesmente fechou.
No Google, encontrei apenas um texto que faz menção à casa, escrito em 2013 pela jornalista Cynthia Porto. Segundo a autora, o local se chamava Cantina Europa. Pertencia a dois irmãos vênetos de sobrenome Macchiarolli, idosos e sem descendentes, e foi fechado em setembro de 1973. Deu lugar a uma fábrica de aveia e, mais tarde, a um shopping popular.
Assim é São Paulo. As coisas surgem e desaparecem sem deixar rastros. Além dos Macchiarolli, fecharam a Balilla (também no Brás), a Pellicciari (no Belenzinho), a lendária Gigetto, no centro, e outras tantas que eu não cheguei a conhecer. Giovanni Bruno, símbolo da tradição cantineira paulistana, morreu sem deixar legado. As veteraníssimas Capuano e Castelões sobrevivem aos trancos e barrancos. Da velha guarda, persiste com dignidade a Jardim de Napoli, em Higienópolis.
De resto, as famosas cantinas de São Paulo se transformaram em caricaturas de si mesmo ou esmaeceram até perder toda a graça. A tradição pereceu sem que alguém surgisse para resgatá-la.
A comida de cantina nunca foi italiana puro-sangue, embora ninguém soubesse disso no início. Foi criada por imigrantes que sem recursos nem acesso aos ingredientes da Itália, fizeram por aqui a melhor versão que conseguiram da culinária da terra natal. Cantina italiana, como a conhecemos, é algo exclusivo do Brasil: na Itália, “cantina” significa adega; um restaurante familiar chama-se “trattoria”.
No início dos anos 1980, as cantinas paulistanas eram um fenômeno de popularidade. O turismo receptivo de São Paulo consistia, basicamente, em visitantes domésticos no programa casado compras/teatro/cantina. Mais ou menos nessa época, surgiu uma nova geração de cantinas, de vínculo tênue com os imigrantes originais. Alguns donos vinham de famílias italianas que nunca trabalharam no ramo; outros eram ex-funcionários de restaurantes tradicionais. Todos sentiram-se à vontade para transformar a cantina paulistana na mais autêntica arapuca de turista.
O Bixiga era, naquela década, uma longa carreira de lugares parecidos entre si, todas com o apelo folclórico ítalo-paulistano, “orra meu”, patacoadas sem fim. Essas cantinas tinham garrafas, provolones e salames pendurados no teto, em meio a objetos antigos, animais empalhados, instrumentos musicais e as mais variadas quinquilharias. A música era altíssima – tarantela tocada ao vivo –, e a clientela participava do barulho com buzinas e pandeiros acorrentados à parede.
A comida era um detalhe, o que importava era a bagunça. A freguesia se empanturrava com pão duro, berinjela acre, queijo de quinta categoria, carneiro travestido de cabrito e macarrão mole flutuando em molho de tomate ralo, pálido e insípido.
O declínio era inevitável.
E, quando o declínio chegou, São Paulo começou a se abrir para o mundo e conhecer outras cozinhas – a japonesa e, inclusive, a comida autêntica italiana. Na última década do milênio passado, o paulistano conheceu a massa de trigo duro, os tomates pelados e o arroz arbóreo. O nível de exigência subiu substancialmente. Não dava mais para as cantinas.
O que os restaurantes italianos ganharam em qualidade, eles perderam em personalidade. Hoje, em São Paulo, pratica-se uma culinária italiana de padrão internacional. Os mesmos pratos podem ser encontrados em Tóquio, em Dubai, em Nova York.
Mas Nova York leva uma vantagem: ela preservou a tradição ítalo-americana, os restaurantes velhões de filme de mafioso. O equivalente gringo das cantinas de São Paulo.
Por aqui, jovens cozinheiros de ascendência italiana buscam reviver a culinária cantineira. É o caso de Felipe Zanuto, que abriu o Hospedaria no maior reduto “orra meu” da cidade, a Mooca. Trata-se de um restaurante dedicado às culinárias de imigrantes de diversas origens, com o acento italiano em destaque.
Outro bom exemplo é o restaurante recentemente aberto dentro da anciã padaria Basilicata, no Bixiga, em meio aos zumbis das velhas cantinas dos anos 1980. Rafael Lorenti, da quinta geração da família dona do negócio, elaborou um cardápio que mistura pratos de cantina repaginados (caso do fusilli com tomate e “molica” – farofa de pão e nozes) com clássicos italianos e algumas criações próprias.
É realmente empolgante que São Paulo volte a ter uma culinária de raízes italianas com sotaque próprio. Hospedaria e Basilicata, no entanto, não são cantinas. Ambas as casas praticam cozinha autoral, enquanto a “nonna” – essa entidade que paira sobre os lares italianos – era o lastro de confiabilidade das cantinas de antigamente. Mesmo que a avó já estivesse morta há muito tempo, seu espírito comandava a cozinha.
As cantinas morreram porque o paulistano as deixou morrer. Perdeu interesse por elas. A linha de continuidade foi quebrada, e qualquer coisa feita agora – por mais bem-feita que seja – é um simulacro de outra era.
A cantina paulistana morreu, mas ainda não tem certidão de óbito. Esta só será assinada no dia que que for servido o último polpettone do Jardim de Napoli.