Os 12 maiores micos da gastronomia de São Paulo

Sanduíche de mortadela do Mercadão
Sanduíche de mortadela do Mercadão, um dos “tesouros” gastronômicos de São Paulo (foto: Eduardo Knapp/Folhapress)

 

O aniversário da cidade de São Paulo está quase lá, e eu me despeço da série temática paulistana com dois posts sobre o que há de pior e de melhor na gastronomia da cidade. Vou deixar o melhor por último: o texto de hoje fala das coisas que mais me irritam nos hábitos de meus concidadãos na hora de comer fora. No próximo post, as 25 coisas mais bacanas da cena gastronômica de São Paulo – cidade que eu amo e que certamente tem o melhor conjunto de restaurantes do Brasil.

 

Pastel do Dória
Os paulistanos, a começar pelo seu prefeito, ADORAM pastel de feira (foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Folhapress)

 

  1. O pastel de feira

 

Esta é uma briga que eu hesitei muito antes de comprar, porque o paulistano simplesmente venera pastel de feira. Tive colegas de trabalho que trocavam um almoço decente por dois ou três pastéis sob o sol fustigante, com aquele aroma de peixe típico do fim de feira e os caminhões de lixo já recolhendo a xepa. Programão.

Mas vamos deixar o programa de lado e focar no pastel. O pastel de feira tem a pior relação massa-recheio que você pode encontrar. Ele é grandão, mas todo o recheio fica lá no fundo. Cerca de 80% das mordidas pegam massa e vento, enquanto o óleo do queijo escorre por baixo e queima a sua mão. Falando em queimar, a rodela de tomate do pastel de pizza é uma arma letal.

Os melhores pastéis são aqueles pequeninos, que vêm em porções no boteco e você mata em duas ou três bocadas.

 

  1. Os bares temáticos

 

No começo, era divertido. Tinha o Pirajá, que se inspirava no Rio. Tinha o São Cristóvão, com as paredes cheias de quinquilharias de futebol. O sucesso desse tipo de casa fez com que todo boteco novo tivesse um lero-lero marqueteiro temático. Muito “storytelling” e quase nenhuma substância para entregar. O caso mais inacreditável que eu vi era de um lugar na Aclimação, minha terra natal, chamado Cara de Pau. O bar, que evidentemente não decolou, era todo decorado com caricaturas de políticos corruptos. Mas, gente!, quem quer tomar cerveja com o Collor na frente, o Maluf de um lado e o Sarney do outro?

 

Moqueca em Vitória: os verdinhos são só coentro. Em São Paulo, seria crime (foto: Marcos Nogueira)
  1. O anti-coentrismo

 

O paulistano se julga cosmopolita e aventureiro, mas toda culinária exótica que pousa nesta terra é suavizada, diluída e mutilada. Comida baiana? Pega leve no dendê e no leite de coco para não ferir o sensível paladar do nativo. Mexicano? Dá para vir sem pimenta? Moqueca capixaba? Sem coentro, por favor. O coentro, por sinal, é alvo de um ódio inexplicável por parte dos habitantes de Piratininga. Desde pequeno, ele aprende a ficar longe desse tempero de bugre. Boatos dão conta de que a bancada da salsinha na Câmara Municipal está redigindo um projeto de lei para proibir a venda da erva nas feiras livres da cidade.

 

  1. O food truck fixo

 

Podem responsabilizar a legislação municipal, mas a recente cultura de food trucks paulistana é um mico sem tamanho.

Comida de rua tem uma finalidade bastante clara: alimentar os passantes que não têm tempo ou disposição para entrar em um restaurante. Nos EUA, os food trucks circulam pela cidade e estacionam em diferentes pontos – onde encontram vagas – em um mesmo dia. Aqui em São Paulo, isso é proibido.

Então os food trucks se aboletam em vagas particulares de outros tipos de comércio – lojas, bares, barbearias gourmet – e de lá não saem. Ou então vivem de participar de eventos que contratam vários deles para montar uma praça de alimentação sobre rodas.

Em São Paulo, “street food” significa sair de casa já com o propósito de ir ao food truck X ou Y para: pagar mais ou menos o mesmo preço de um restaurante por uma comida de qualidade inferior, no sol, na chuva ou no frio, sem ter onde sentar e com pratos e talheres de plástico.

 

  1. A comida peruana temakizada

 

Quando a comida peruana começou a aparecer aqui e ali na cidade – o primeiro restaurante foi o Killa, em Perdizes, seguido pela filial do limenho La Mar –, parecia que a coisa iria pegar forte. A transformação do Rinconcito Peruano em um reduto hipster no coração da cracolândia foi uma guinada nessa história. O Rinconcito resolveu replicar sua fórmula em pontos mais frequentáveis da cidade: trocou o imigrante sem dinheiro pelo jovem branco durango, mas manteve o ceviche de tilápia como carro-chefe do cardápio. No Peru, o mais importante para um bom ceviche – comida litorânea por excelência – é a qualidade do pescado fresco. Aqui, para manter custos baixos e preços razoáveis, optou-se pelo peixe de criação em água doce. Foi um sucesso total de público, reproduzido por outros empreendedores expatriados. Eu não faria diferente. Pena que a gastronomia peruana de São Paulo seguiu o exemplo das temakerias, não das melhores casas de sushi.

 

Sushi, para o paulistano médio, é sinônimo de salmão chileno de cativeiro. O “peixe branco” é secundário )foto: Divulgação)
  1. O salmão laranja e o peixe branco

 

São Paulo é um dos melhores lugares do mundo para explorar a culinária japonesa, disso não há dúvida. O problema é que, à parte a meia dúzia de restaurantes excelentes e caríssimos, mais outros 10 ou 20 que se apegam à tradição de modo aferrado, a oferta de comida japonesa na cidade é tão farta quanto fraca. Aquilo que a média da classe média paulistana chama de “japa” são as temakerias, o sushi do sacolão, as redes de praça de alimentação e os infames rodízios. Nesses lugares, peixe é sinônimo de salmão chileno de cativeiro – alimentado com corantes para ficar alaranjado. Como alternativa, serve-se o genérico “peixe branco”, que pode ser tilápia, panga, polaca ou o congelado que estiver mais barato.

 

  1. A epidemia de temakerias

 

O brasileiro, em especial o paulistano, tem o dom único de pegar uma coisa bacana e explorá-la até desgastar tudo o que havia de bom nela. Foi assim com o temaki.

Em japonês, “temaki” significa qualquer sushi enrolado com as mãos, independente do formato. Aqui, virou sinônimo do cone de alga tamanho XXG, de preço camarada-para-estudante-sem-grana e com as mais heterodoxas opções de recheio.

Temaki de salmão com cream cheese é só o começo da conversa. Tem temaki de fandangos, de doritos, de tomate seco, de carne de sol, temakibe e até acaramaki. Em pensar que esse pesadelo nasceu em São Paulo para invadir o Brasil e o mundo – Milão tem duas redes de “temakeria brasiliana”.

 

Nosso prefeito também é frequentador das coxinharias (foto: Jales Valquer/Fotoarena/Folhapress)
  1. As coisarias em geral

 

Não sei quando nem por que a praga surgiu, mas suspeito que tenha sido lá nos anos 1980, quando os empresários da noite resolveram chamar as discotecas de “danceteria”. Por um tempo, a onda ficou contida. Tentaram inventar a “lancheria” – ou, alternativamente, “lancheteria” –, mas não colou. Nesta última década, a besta fugiu da jaula. Surgiram brigaderias, churrerias, coxinharias, cupcakerias, temakerias, bolerias, hamburguerias, carneloquerias (sim, existe e fica na Vila Madalena) e, “last but not least”, as saudosas paleterias mexicanas.

Em comum, todos esses lugares têm a preguiça mental de quem batiza o próprio negócio e um tipo bem peculiar de empreendedorismo: aquele que busca o lucro sem riscos, com estabelecimentos monotemáticos ultra-específicos. Não por acaso, a maioria naufraga.

 

  1. A “Cucchina itallianna”

 

Em algum momento do final do século 20, o paulistano se convenceu de que o legado da imigração o credenciava para inventar em cima da gastronomia e da língua italianas. A regra é simples: dobre as consoantes (todas menos uma) de uma palavra em português para obter o mesmo vocábulo no idioma de Dante. Palavras terminadas em “al” devem terminar em “alle”. Exemplo: “artesanal”, em italiano-paulistanês, é “artezzannalle” (em italiano-italiano, é “artigianale”).

Na cozinha, tamanha falta de noção degenerou em invenciones que têm o requeijão como rei, o molho rosé como príncipe e o champignon em conserva como primeiro-ministro. Leia mais no verbete das pizzas.

 

Pizza de feijoada, quem nunca?

 

  1. A criatividade infinita dos pizzaiolos

 

No princípio, havia a mussarela e a aliche. Pouco a pouco, a paleta de opções das pizzarias da cidade começou a crescer de forma descontrolada. Portuguesa, siciliana, baiana, tudo bem. Frango com catupiry, tomate seco com rúcula, vá lá. Palmito, milho, carne seca, bacalhau, salame, salsicha, batata palha, cinco queijos, seis queijos, sete queijos, toda a despensa virou cobertura de pizza. Carpaccio – será que o indivíduo não percebe que a carne crua cozinha na massa quente? Sem falar na tal da borda recheada e nas pizzas de sobremesa. Para encontrar as combinações mais bizarras, pegue um flyer de pizzaria de bairro e procure o sabor “à moda da casa” ou “do pizzaiolo”.

 

  1. O Mercadão

 

Precisamos falar do Mercadão.

Não é só culpa dele. O Mercado Municipal Paulistano, vulgo Mercadão, faz parte de um dos maiores fracassos urbanísticos desta cidade: o Parque Dom Pedro 2º. Criado em 1922 para ser uma bela e ajardinada área de lazer na várzea do rio Tamanduateí, o parque se transformou em um emaranhado de viadutos que conectam a Radial Leste, a Ligação Leste-Oeste e a avenida do Estado. Quem chega de carro precisa enfrentar o trânsito dantesco e a falta de estacionamento; quem vai de transporte público deve antes atravessar a multidão da rua 25 de Março.

Superado o deslocamento, temos um prédio bonito com comércio caro e voltado para turistas. Do outro lado da avenida, na Zona Cerealista, há lojas mais interessantes – mas frequentar a Zona requer encarar uma dose extra de distopia urbana.

As opções de alimentação dentro do mercado são a pior parte do programa. Duas das comidas mais supervalorizadas da cidade estão lá: o sanduíche de mortadela do Bar do Mané (um monstro desequilibrado, leia mais aqui) e o pastel de bacalhau do Hocca Bar, seco e grande demais.

Além desses dois estabelecimentos, que têm filas colossais nos dias de maior movimento, há um mezanino todo ocupado por restaurantes que não valem o passeio, mais um punhado de lanchonetes que imitam a tal da mortadela e o tal do pastel.

Programa muito mais agradável, com comida muito melhor: Mercado de Pinheiros.

 

  1. Os restaurantes de shopping

 

Praia de paulista é shopping, escarnecem os cariocas. Mas ninguém rebate a troça com argumentos, pois ela é totalmente verdadeira. Depois que fecharam o deck de observação de pousos e decolagens em Congonhas, o shopping center se tornou o programa favorito do paulistano em seus dias de folga.

Os donos de restaurantes sabem disso, e assim muitas das melhores casas da cidade abrem filiais nesses centros de comércio e entretenimento com valet e cinema 3D. Pior, alguns restaurantes – bons restaurantes, como a Bráz Trattoria – existem somente dentro do ambiente seguro e anódino de um shopping center. Uma pena, pois eu gostaria de provar sua comida algum dia.