Vilã da vez, a indústria alimentícia já salvou a humanidade
A comida industrializada está em baixa. Um artigo do Financial Times, publicado pela Folha nesta segunda-feira (19/2), analisa a crescente rejeição do consumidor aos produtos de empresas como Coca-Cola, Heinz e Danone. Essas corporações têm apanhado para tentar manter uma clientela cada vez mais preocupada com a qualidade da alimentação.
A indústria apanha, acusa o golpe, mas a reação ainda é só uma tentativa de se agarrar às cordas. As providências que o setor tomou para segurar o público “saudável” são paliativas e, na maior parte das vezes, cosméticas. Troca-se o açúcar por suco concentrado de maçã (açúcar quase puro). Inventa-se um “storytelling”, um lero-lero qualquer para vender o produto como se fosse caseiro. Os estrategistas requentam ardis marqueteiros dos tempos em que a TV passava comerciais de pinga e de cigarro sem filtro.
Falta à indústria alimentícia girar a chave. Entender que os padrões de consumo mudaram de verdade. E também mudar para sobreviver.
Embora os profetas do Apocalipse digam o contrário, vivemos o ciclo histórico de maior abundância e prosperidade que já houve. A comida massificada perde mercado porque o consumidor de hoje é instruído e consciente. Mais do que o consumidor de ontem, pelo menos.
Eu sou desses. Leio todos os rótulos e contrarrótulos. Fujo de comidas ultraprocessadas. Brinco de fazer bacon, linguiça, ketchup, queijo e até Nutella em casa. Meu filho de 5 anos não conhece o sabor da Coca-Cola – tomou guaraná em uma festinha no sábado passado, enquanto dava risada da minha total falta de autoridade na ocasião. Gasto muito mais do que seria sensato para comprar orgânicos e artesanais.
Mas tem um povo que exagera. A militância da “comida de verdade” – inclua aí a produção em pequena escala, a agricultura familiar, os orgânicos e os autodenominados artesanais – trata a indústria alimentícia como se ela fosse a fonte de todos os males. Ela prega a aniquilação desse demônio para um retorno ao estado natural das coisas.
Não é um tratamento justo. A bem da verdade, a indústria dos alimentos salvou a humanidade da fome e da peste. O discurso dos ativistas da alimentação imaculada carece de perspectiva histórica.
A indústria alimentícia nos empurra carboidratos, sódio, aditivos, enfim, comida de baixíssima qualidade nutricional. Ela seduz as crianças, os incautos e os crédulos com histórias da carochinha. Trabalha no limiar da ética para reduzir os custos de seus produtos. Os grandes “players” do setor não hesitam em jogar de forma bruta para barrar o crescimento dos pequenos.
Tudo isso é verdade.
Mas, na encenação de Davi e Golias, os nanicos também lançam mão de artifícios duvidosos. Apostam na negação do marketing como estratégia de marketing. E omitem do discurso tudo o que possa enfraquecer sua tese maniqueísta. É um recurso retórico mais velho do que andar para a frente.
A omissão mais grave diz respeito ao papel que a indústria alimentícia teve nos séculos 19 e 20.
O marketing do artesanal pinta um passado em que as vaquinhas pastavam alegres pela relva verde enquanto a vovó preparava uma torta com a manteiga que ela mesma havia batido. Um mundo idílico com riachos de água cristalina, vinho natureba, pão de levain e queijo de leite cru da serra da Canastra.
A nostalgia é uma praga que nos rouba a razão – os ideólogos, incluindo os marqueteiros, sabem bem disso. Esse passado bucólico só existe na fantasia de quem quer fantasiar com ele.
O mundo era uma pocilga até a segunda metade do século 19.
São mais ou menos nessa época as pesquisas pioneiras de dois campos revolucionários: a microbiologia e a refrigeração artificial.
Leite era um troço perigosíssimo até cem anos atrás ou menos. Em São Paulo, nas primeiras décadas do século 20, os leiteiros conduziam vacas e cabras vivas para atender à clientela com frescor máximo e higiene zero. Boa parte desse leite imundo era destinado às crianças com menos de 1 anos de idade – cujas mães trabalhavam fora e não podiam amamentar durante o dia. O resultado era uma taxa altíssima de morte de bebês por diarreia. Graças à pasteurização do leite, a mortalidade infantil caiu drasticamente.
A refrigeração permitiu a preservação e o transporte de alimentos frescos.
A indústria alimentícia ergueu os pilares daquilo que conhecemos por segurança alimentar. Foi ela que financiou o trabalho dos cientistas.
Louis Pasteur foi bancado por fabricantes de vinho e de cerveja – se você acha que isso não é alimento, vá discutir com os franceses, que pensam diferente. Os patrocinadores dos estudos sobre refrigeração artificial foram as indústrias de carne e de cerveja (olha ela outra vez).
Claro que hoje a situação é muito diferente. O mundo, porém, continua dependente do poder econômico de conglomerados como Nestlé e Unilever.
A tecnologia empregada pelos pequenos produtores é sempre de segunda mão. Os setores de equipamentos e insumos atendem primeiro os grandes – e depois buscam os clientes menores. É a lógica do capitalismo, goste dela ou não.
A extinção dos alimentos industrializados seria catastrófica. Sem a indústria, cessa também o fomento à pesquisa. É preciso vigiar e impor limites aos gigantes, mas a tática do confronto total é burra por uma série de razões. A principal delas: a remota hipótese de vitória é o pior cenário possível.
A indústria alimentícia é um vilão necessário. Se ela desaparecer, voltaremos no tempo até a época da fome e da peste.