O bacalhau dos hipócritas
Na adolescência, eu tinha um amigo que se dizia católico observante.
Certa noite – uma noite de Quinta-feira Santa – fui à pizzaria Speranza com ele, seu pai e um irmão mais velho. Profissionais na arte de comer pizza. Já era um pouco tarde quando saímos da casa de meu amigo.
No restaurante, pedimos pizzas nos sabores margherita e calabresa. O garçom chegou com a comida, e todos – menos eu – serviram-se da pizza de linguiça.
Antes da primeira garfada, o pai de meu amigo perguntou que horas eram.
“Meia-noite e cinco” foi a resposta.
Meus três acompanhantes devolveram a calabresa para a travessa (na verdade um prato de louça, tradição no serviço da Speranza) e trocaram-na por pizza de queijo.
Eu fiquei atônito. Não entendi patavina. Disseram-me, então, que já era Sexta-feira Santa. Quando a carne é um pecado.
Ah, tá.
Ateuzinho que já era, eu me esforcei para comer toda aquela calabresa. Não logrei êxito nessa missão.
* * *
Dizem que o Natal foi conspurcado pela a exploração comercial, mas creio que o caso da Páscoa é mais agudo. A data se tornou meramente uma data para empurrar chocolate superfaturado na goela do consumidor.
E a Sexta-feira Santa, que precede a Páscoa? Essa é uma celebração sagrada.
Ah, tá (II).
Na Sexta da Paixão, todo mundo se importa com aquilo que você põe no prato. Refiro-me aos católicos, claro, que passam os outros 364 dias do ano sem a remota recordação de que professam uma crença.
Comer carne na Sexta Santa é, no mínimo, deselegante. Uma gafe social. Indelicado. Insensível.
Agora, é perfeitamente aceitável se entupir de bacalhau e encher a cara de vinho. Comer e beber até desmoronar na rede da varanda da casa de praia.
Essa gente pratica a religião de forma tão frouxa que não consegue captar a simbologia ritual da igreja que resolveu seguir.
A Quaresma, em tese, é um período de penitência, jejum e abstinência. E a Sexta-Feira Santa, que remete à execução de Jesus, deveria ser o auge de toda essa sofrência. Um dia de sacrifício, não de comilança desenfreada.
No decorrer dos séculos, a própria igreja de Roma foi acochambrando o rigor dos rituais da Quaresma – já que o rebanho não os cumpria. A Sexta-feira Santa, porém, foi preservada como uma data de luto e reflexão.
Eu, que não tenho religião, sinto-me no direito de aproveitar o feriado na esbórnia.
Só não quero que os santinhos-do-pau-oco hipócritas ponham olho gordo na minha picanha.