Pelo direito de beber cerveja ordinária
Antes que alguém se ofenda, não emprego a palavra “ordinária” no sentido de “vagabunda” – qualquer sentido que “vagabunda” possa ter. Uso o termo como sinônimo de “comum”, “vulgar”, “normal”. O contrário de “especial”.
Falo da cerveja de 600 mililitros, da latinha, do latão e do litrão.
Falo de Brahma; Heineken, Itaipava e Skol; Proibida, Amstel, Nova Schin e Original; Serramalte, Devassa e Antarctica.
Falo da cervejinha amarelinha que nós, brasileiros, chamamos de pilsen e gostamos de beber bem gelada. Tanto faz se é puro malte ou se leva milho. Algumas são boas, outras dão para tomar e tem aquelas que a gente só encara quando não tem mais nada. Honestamente, a qualidade não importa.
O assunto é outro: a guinada radical de foco que as cervejas especiais trouxeram para a experiência de beber.
Antes, a cerveja era o combustível da conversa à mesa; ela se tornou o assunto principal, roubando os holofotes. E isso é muito chato.
Aconteceu com todo tipo de alimento. Quando um brigadeiro leva granulado de chocolate belga para virar brigadeiro gourmet, ele é brega pra diabo. Já a IPA quíntupla com lúpulos cingaleses – vendida ao preço de um almoço executivo, por um barbudo com alargador de lóbulo auricular, em uma espelunca com fiação exposta – é bacana, é trendy.
Raio gourmetizador e autoengano na cachola dos outros são refresco.
Bebíamos café para ganhar coragem e começar o dia – ou qualquer atividade que gostaríamos de deixar para lá. O chocolate era uma bomba açucarada para nos consolar nos maus momentos (e nos alegrar nos bons). Cachaça era pra tomar pileque. Queijo e salame estavam lá, simplesmente, para rechear o pão. E o pão, ora pipocas!, era pão. Nem preciso falar das pipocas.
De uns anos para cá, todas essas comidas e bebidas ganharam versões pretensamente artesanais. (Geralmente) melhores e mais caras. Dou o maior apoio moral – e monetário, já que sou comprador – a quem se preocupa com a qualidade do alimento. Só não engulo o storytelling por trás disso.
Querem nos convencer de que a comida “artesanal” nos remete a um passado idílico, em que as vaquinhas pastavam alegremente pelas campinas enquanto a vovó mexia um tacho com o puro creme do artesanato.
Na verdade, é o contrário. Esse movimento não passa de um desdobramento de um capitalismo cada vez mais voraz e complexo. Da busca de nichos sempre mais específicos, onde o consumidor está disposto a pagar uma bala por algo que lhe parece custom-made.
A cerveja artesanal saiu da mesma panela de onde veio o Facebook. A vovó perdeu os dentes, e as vaquinhas morreram de febre aftosa. Este é o século 21, amigos.
Eu assisti de camarote ao nascimento do fenômeno.
Comecei a escrever sobre bebidas em 2008. Meu chefe queria que eu tivesse uma coluna de vinhos, mas eu bati o pé e mantive o leque aberto para cervejas e destilados – não porque pressentisse algo, apenas porque era uma besta ignorante em matéria de vinhos.
Naquela época, a coisa das cervejas especiais começou a ganhar corpo. Eu resisti, mas não por muito tempo. Embarquei na onda, passei a frequentar o meio cervejeiro e até fiz um curso de sommelier. Posso dizer com segurança que entendo um pouco de cerveja.
Eis que uma mudança de maré me jogou na Grande Diáspora Jornalística de 2013. Sem emprego fixo, tive uma queda substancial de poder aquisitivo. Pobre, redescobri o prazer de beber cerveja comum. O ser humano é uma criatura muito flexível.
Os especialistas em cerveja são necessários à sociedade moderna – sem eles, não haveria cerveja. Mas eles precisam entender que nem todo mundo dá toda essa importância à cerveja. Se eles gostam de ir ao bar para falar de cerveja e penhorar as joias da mãe para pagar a conta, o problema é deles.
O resto da humanidade gosta mesmo é de dar risada e falar mal dos ausentes enquanto entorna garrafas e mais garrafas de pilsen gelada. No copo americano, é claro.