Morte de restaurantes tradicionais põe em risco a memória paulistana
A cantina Capuano, restaurante mais antigo em funcionamento contínuo na cidade de São Paulo, encerrou as atividades há pouco mais de duas semanas. Desde 1907 no mesmo endereço, na rua Conselheiro Carrão (Bixiga), a casa não resistiu à morte do dono Angelo Luisi.
O fechamento da Capuano é um baque enorme na cena gastronômica de uma cidade que já foi famosa por suas cantinas. Enquanto a memória culinária vai morrendo, as autoridades de ocupam de mesuras inúteis: a mais vistosa delas foi a recente elevação do virado à paulista ao status de patrimônio histórico imaterial.
Se realmente se preocupassem com o patrimônio histórico, prefeitura e governo estadual deveriam trabalhar para evitar perdas como a Capuano.
Em quase meio século de vida, eu já vi a agonia de muitos restaurantes – uns bons, outros nem tanto, mas todos relevantes de alguma forma.
O Parreirinha, no centro, cuja fachada tinha uma vitrine que exibia rãs em pose de bailarinas.
O La Paillote, famoso pelo caríssimo camarão à provençal, que deixou o improvável endereço no Ipiranga para agonizar nos Jardins.
O Cacciatore, que servia comida da Itália setentrional em meio às cantinas do Bixiga.
O Gigetto, que projetou o restauranteur Giovanni Bruno numa época em que garçons ascendiam socialmente.
O Massimo e o Antiquarius, o cúmulo do luxo em suas épocas.
O alemão Kakuk, em Santa Cecília, e suas estranhas cabines equipadas com interruptor para chamar o garçom – mais um delicioso purê de ervilhas para acompanhar o eisbein.
O Suntory, cenário de banquetes japoneses.
O Pandoro, que tinha o bar mais charmoso de São Paulo.
A cantina Balilla, no Brás, em que o cliente atravessava a cozinha para chegar ao salão e comer um delicioso capão na brasa ao molho de cebola.
A pizzaria Celeste, instalada em um sobrado decadente na Vila Mariana, que deu origem à Mamma Celeste e ao Babbo Giovanni, este convertido em uma rede de franquias qualquer nota.
A pizzaria Micheluccio, na rua da Consolação, que teve fim semelhante ao da Babbo.
A pizzaria do Edgar (Edgard?), uma lembrança de infância: o dono não admitia juntar mesas e servia só dois sabores de pizza, aliche e mussarela. Não encontrei referências na internet.
Lugares que foram reabertos, mas sem a alma antiga: Bologna, Riviera, Don Curro, Fuentes, Carlino, Acrópoles, Da Giovanni, Bar Léo.
E centenas de outros restaurantes defuntos. Essas casas fecham porque morre a matriarca ou o patriarca, por causa de uma briga familiar, por má gerência. Com elas, somem fragmentos da nossa história.
É difícil pressentir a morte de um restaurante. Na Capuano, estive pela última depois de um jogo de Copa de 1998. Salão ermo, escuro, toalha de mesa puída, louça desgastada pelo uso, comida apenas passável. Deixei de frequentar porque havia algo de errado no ar. O lugar cheirava a decrepitude. Não tinha muito tempo de vida.
Errei em 20 anos meu prognóstico. E sinto-me culpado por ter abandonado a Capuano.
Outros lugares antigos me transmitem a mesma sensação de fim iminente: Castelões (cujo dono me escreveu um e-mail emocionado depois do artigo sobre cantinas paulistanas), Star City, Caverna Bugre, PASV, Los Molinos, Gato que Ri, La Casserole, Bolinha, Terraço Itália.
Posso estar errado – espero estar errado – na maioria dos casos citados acima.
Mas não seria ruim se as autoridades dessem alguma atenção e suporte a esses restaurantes históricos.
Abatimento ou isenção fiscal, ações de promoção turística, inserção de donos e funcionários em programas de gestão de restaurantes, reurbanização de zonas degradadas, apoio a projetos que valorizem a memória gastronômica – como o livro “50 Restaurantes com Mais de 50”, parceria da chef Janaína Rueda com o jornalista Rafael Tonon. No mínimo, a catalogação de receitas e da história dos estabelecimentos tradicionais da cidade.
Enfim, qualquer atitude concreta seria mais eficaz do que dar um troféu de honra ao mérito para o virado à paulista.
Enquanto ela não vem, vamos perdendo os restaurantes que contam a história de São Paulo num prato de comida.