Soberba vence a gula em bandejão modernoso de Pinheiros

Hoje eu escrevo sobre o Futuro Refeitório, um dos restaurantes que eu avaliei para o Guia Folha na edição de 4 de maio (precisei tirar o atraso com as casas que já haviam sido publicadas).

Na edição impressa, dei duas estrelas (“regular”) para o estabelecimento. O texto que acompanha a nota, telegráfico, diz o seguinte:

“Comida muito boa, mas a afetação hipster compromete a experiência.”

Se dependesse apenas de mim, eu não gastaria tempo e espaço para falar mal deste restaurante ou aquele. Faço críticas sem rodeios a certas práticas e posturas do meio gastronômico, mas não me sinto confortável em manter esse tom quando a coisa fica pessoal, particular. Ninguém sabe o peso do fardo que os outros carregam nas costas.

Além disso, não vejo muito sentido em apontar os lugares que você não recomenda ao leitor.

Exceto em roteiros especializados, como o Guia Folha, cuja função é justamente hierarquizar as atrações culturais, gastronômicas e turísticas de algum lugar.

Como jurado do quadro de restaurantes, recebo uma lista de casas a visitar até determinada data. Tenho o dever profissional de avaliar cada uma delas e justificar o meu conceito.

Quando o julgamento pende para o negativo (caso do Futuro Refeitório, de onde saí irritado), parece-me ainda mais importante explicar os porquês de cada crítica. Se não for assim, parece porrada gratuita.

 

* * *

 

A comida é boa no Futuro Refeitório. Muito boa.

O restaurante está no zeitgeist de todo modernoso que se preze. Eu precisava conhecer, mas não por isso –recebi a missão de avaliá-lo para o Guia.

Fui no café da manhã. Melhor, no brunch de sábado.

Pão fresquinho de fermentação natural, feito lá mesmo. Manteiga de primeira. Um queijo quente delicioso, com queijo canastra, mussarela e outro que o garçom não soube me dizer; compota de tomate à parte. Pain au chocolatcomme il faut. Torta de limão corretíssima.

Se a tarefa fosse avaliar a comida, o Futuro teria três estrelas (“bom”) para mim, talvez quatro (“ótimo”).

Acontece que a comida é somente parte da experiência em um restaurante.

Uma atmosfera bacana pode atenuar o despontamento com refeições medíocres. O contrário também é verdadeiro.

O Futuro Refeitório, a começar pelo nome, se posiciona como um manifesto. Uma amostra da alimentação ideal, do desenho do espaço físico ao sistema de serviço. Passando pelo alimento em si. Um experimento social ambicioso e pretensioso.

E o futuro de São Paulo, em sua visão, deve espelhar o presente de Portland. Uma utopia hipster no coração de Pinheiros.

O restaurante ocupa o galpão de um antigo estacionamento, com parte da pintura original preservada. Não há placa, apenas um luminoso de néon numa parede interna: “Deve ser aqui”. O corredor leva a um espaço amplo, com cozinha aberta, algumas mesas coletivas e outras para grupos fechados.

Os equipamentos hi-tech da cozinha contrastam com o salão espartano. Tudo calculado para emular um bandejão de firma, inclusive a mobília barata e a convivência compulsória nos mesões.

Garçons e garçonetes parecem ter sido importados de Seattle ou Copenhague, na indumentária e na atitude blasé.

A água é grátis (adoro coisas grátis, isso é fato). O copo é de lata. Trata-se de um detalhe divertido em um restaurante genuinamente caseiro como o Jesuíno Brilhante; aqui, um desconforto desnecessário.

O menu reverbera todos os mantras da comunidade foodie. Plant-based, natural, orgânico, integral, pequenos produtores, sustentável, fermentação longa, microlote, cold brew, avocado, chia, kombucha.

Quero um suco para o meu filho. São dez da manhã, e a casa oferece coquetéis com cachaça, vodca e rum. Mas não tem suco de laranja. Apenas bebidas mistas que atendem por “verde redenção”, “amarelo alvorada” e “roxo rubi”. Quase um semáforo.

“Mas não dá para fazer um suco simples? Laranja, abacaxi, melancia?”

“Não”, responde laconicamente o atendente como quem diz: “não conhece as regras da casa?”.

Entendo que alguns lugares não sirvam suco natural por causa de estoque e do barulho das máquinas. Meio que entendo a implicância de certos restaurantes gastronômicos com o serviço de bebidas doces.

Mas estamos no café da manhã. E o lugar serve sucos, mas se recusa a fazer sucos de uma fruta só. Como se um bar de coquetéis se negasse a fazer um dry martini porque não está na carta autoral do mixologista estrelado.

Vencidos, pedimos o amarelo alvorada, que leva abacaxi, maçã e água de coco –eleito por eliminação, já que as outras opções levavam salsão, beterraba, repolho e couve.

O suco chega. Copo enorme, cheio até a boca, nada de canudinho para o rapaz de 5 anos. Meu moleque pergunta do canudo, e eu lhe digo que é melhor ficarmos quietos para não tomar um esporro do garçom.

Sim, sei do drama ambiental causado pelos canudos de plástico. Sei também que a alternativa apresentada não foi satisfatória.

Ao fim, devemos nos levantar e entrar na fila para entregar a comanda no caixa.

Se fosse uma padoca, tudo bem. Um queijo quente de 24 reais e 13% de serviço deveriam incluir maquininha de cartão na mesa. Ah, mas e o conceito de bandejão?

Bons restaurantes celebram a gula. O Futuro Refeitório peca pela soberba.