Extásia serve ótima comida fusion em ambiente careta

Fusion food é uma corrente culinária baseada na mistura de tradições alimentares –em geral, ocidentais com asiáticas.

Foi muito popular nos anos 1990, mas cansou o paladar. Isso porque aquela versão da comida fusion era basicamente cozinha francesa com uma dose cavalar de wasabi ou de curry. Virou sinônimo de falsa criatividade, de truque para mascarar a falta de talento.

A mistureba gastronômica voltou com tudo no novo milênio. Seu porta-estandarte é o chef coreano-americano David Chang, da rede de restaurantes Momofuku.

Assistam a David na série “Ugly Delicious” (algo como “Deliciosamente Feio”), em cartaz na Netflix. Sua culinária retira os ingredientes de seu contexto cultural e os combina de acordo com a compatibilidade dos sabores.

Complicado? Vamos a um exemplo. David nos apresenta, em Tóquio, um pizzaiolo que trabalha com atum cru e maionese Kewpie. Parece grotesco, porém funciona –pelo menos é o que o programa diz.

Aqui em São Paulo, o melhor representante dessa culinária transcultural é o chef Flavio Miyamura.

Brasileiro de origem japonesa, ele ganhou destaque uma década atrás, quando tocava a cozinha do espanhol eñe – empreendimento paulistano dos gêmeos catalães Javier e Sergio Torres.

O eñe fechou, e Flavio partiu para um projeto autoral: o restaurante Miya, que ficava no finalzinho da rua Fradique Coutinho, em Pinheiros. Lá, ele misturava com muita habilidade as técnicas francesas, a bagagem espanhola e as raízes nipônicas.

Por alguma razão imponderável, o Miya também não decolou. A cidade, por alguns anos, ficou órfã da ótima cozinha de Flavio Miyamura.

Ele ressurge agora no restaurante Extásia, instalado na sobreloja da filial da importadora de vinhos Grand Cru da Vila Nova Conceição (zona sul de São Paulo).

Minha visita, que deveria ter sido anônima, não foi. Assim que cheguei ao restaurante, Flavio estava em pé ao lado do bar e me reconheceu – minha primeira reportagem da gastronomia para a revista VIP, em 2008, foi com ele, no eñe.

Assim, mandou para a minha mesa coisas que eu não havia pedido. Deliciosas tostadas de atum marinado, com maionese de wasabi, sobre um disco de massa de milho crocante. Um bom sanduíche de peito de boi com kimchi (acelga fermentada e apimentada) e a mesma maionese – sei que a logística de uma cozinha profissional prevê o uso dos ingredientes em mais de um prato, mas aqui ficou redundante.

Os pratos principais –estes, sim, escolhidos no cardápio– fizeram bonito.

Barriga de porco temperada com gochujang (missô apimentado coreano), acompanhada de acelga chinesa e arroz jasmim com furikake (uma mistura de temperos japonesa).

Arroz de pato com chouriço espanhol e kimchi –de novo, a acelga picante coreana. Fantástico.

Flavio, que podia criar à vontade no Miya, aqui está contido. Trabalha dentro das limitações conceituais do restaurante.

O Extásia fica na rua Diogo Jácome, em um corredor de restaurantes para gente rica que inclui o Attimo e o Figo. Para se chegar ao salão, é preciso atravessar a loja de vinhos até a escada nos fundos.

É tudo sóbrio, meio escuro, silencioso, formal. Se eu já não vou muito com a cara de restaurantes luxuosos, aqui estamos um nível à frente: um fornecedor de vinhos caros para a elite paulistana.

O restaurante em si não quebra a caretice da loja. As paredes são forradas com tábuas de caixas de vinhos preciosos.

É um lugar que eu e minha mulher costumamos chamar de “adulto”. Frequentado por brancos de meia-idade com terno e sapatos italianos, empresários, juízes e “doutores” em geral que gostam do vinho e do charuto. Nada contra eles, até tenho amigos. Mas não é a minha praia.

Levei meu filho de 5 anos e, primeira coisa, pedi a remoção das taças de cristal para evitar um strike. Quando solicitei com copo normalzinho para ele beber água, surpresa: a casa serve até Coca-Cola em taças de cristal. Voltam as taças e, para a felicidade geral da nação, elas permanecem inteiras até o fim da refeição.

Observei com prazer o que ocorria em uma mesa próxima. Os clientes pediram um vinho XYZ, que a sommelière de plantão trouxe em um decantador gigante com forma de cobra enrolada – este aqui, que custa R$ 2,5 mil e ainda assim está esgotado para a venda. A coitada se contorcia toda para fazer o líquido verter do vasilhame peculiar.

Ainda sobre os vinhos, que são o negócio principal da casa. No restaurante, o preço da loja é acrescido de R$ 15, independentemente da escolha. Não é o que se espera em lugar assim, mesmo porque recaem 12% de serviço na fatura final.

Enfim, dei três estrelas (“bom”) para o lugar. Eu recomendo muito a comida de Flavio Miyamura, mas não o programa.

E, vamos combinar: Extásia… que nome pavoroso, minha gente.