Tem gente que não nasceu para cozinhar

Escrevo este post em um flat que aluguei por alguns dias em Brasília –cidade onde mora minha filha. É um apartamento adorável, limpo, bem mobiliado e muito bem fornido de equipamentos elétricos e eletrônicos: duas TVs novinhas, uma boa geladeira, secador de cabelo, um cooktop de indução magnética, forno e forno de micro-ondas, sanduicheira e até videogame.

Mas o armário da minúscula cozinha é lamentável. Não tem escorredor de louça. Não tem tábua nem faca para picar ingredientes. Não tem sequer um escorredor de macarrão. Consegui, sei lá como, preparar uma pasta à carbonara nessa situação.

Falei disso, via WhatsApp, com a proprietária do imóvel. Ela ficou um pouco ofendida, na defensiva, e disse que a cozinha era adequadamente equipada para um casal.

Trata-se, evidentemente, de uma pessoa de pouca intimidade com a culinária. Falta de interesse, provavelmente.

Algumas pessoas não nasceram para cozinhar.

Tem gente que encara as refeições como uma pausa incômoda nas tarefas que realmente importam. Tenho pena desse pessoal, mas estou expandindo demais o foco. Voltemos à cozinha. Ou melhor, não. Vou falar de música.

Quando eu tinha uns 13 anos, pus na cachola que seria um grande guitarrista de rock. Torrei a paciência dos meus pais até eles me comprarem uma guitarra cara. Estudei guitarra e violão.

A dedicação ao violão clássico me trouxe um inconveniente extra: as unhas longas na mão direita. Na adolescência, eu automaticamente mantinha o punho fechado –para que não vissem minhas unhas compridas e cuidadosamente lixadas. Mas eu não desistia.

Eu aprendi a tocar mais ou menos. Bem mais ou menos. Eu nunca entendi partituras: precisava decifrá-las nota a nota. A mobilidade da minha mão esquerda era deficiente. Minha paciência com o estudo se esgotava rapidamente. Ainda assim, brinquei de guitarrista e até toquei em público umas três vezes.

Eu demorei cinco anos para me dar conta de que não tinha talento para a música.

Quando você não tem talento, a dedicação nunca é suficiente. Cruel, mas verdadeiro. Vale para a cozinha.

Cozinhar, assim como tocar um instrumento, tem muito de intuitivo. Um bom músico lê a partitura com a mesma naturalidade que a gente lê um texto. A cozinha também tem sua linguagem. É preciso dominá-la para cozinhar bem.

Algum tempo atrás, chamaram-me para redigir uma revista de um supermercado. Cada texto, quatro ou cinco receitas. Em todas, pus na lista de ingredientes: “sal a gosto”.

Os textos voltaram para refação, pois a editora da revista alegou que os leitores reclamavam por uma quantidade exata.

Essas são pessoas que não têm o dom da cozinha. Dosar o sal em uma receita depende de uma série de fatores: da quantidade de líquido, do tipo de ingrediente, do modo de preparo, da combinação de elementos e, claro, do gosto de quem vai comer. Os cozinheiros usam a intuição, o conhecimento acumulado e sempre colocam um pouco a menos para ajustar mais tarde.

Quem não sabe calcular o sal nunca vai saber cozinhar.

Mas o mundo está cheio de cozinheiros sem talento, gente que sequer sabe dosar o sal, aprendeu meia dúzia de truques e se autodenomina chef.

Uma pena. Porque ninguém é inútil. Esse povo deve ter algum talento que nunca será descoberto.

 

BÔNUS: A RECEITA DO PRATO DA FOTO LÁ EM CIMA

Paccheri alla carbonara estilo flat brasiliense

Ingredientes

100 g de guanciale ou pancetta

250 g de massa de trigo duro

4 gemas

1/2 xícara de pecorino ou parmesão picado com uma faca de passar manteiga no pão

Pimenta-do-reino quebrada com o fundo de um copo

Sal a gosto

Modo de fazer

  1. Pique o guanciale e derreta-o numa frigideira a 100 ºC no cooktop de indução. Frite até ficar crocante. Reserve o guanciale e deixe a gordura na frigideira.
  2. Em outra frigideira, cozinhe o macarrão em água fervente e salgada, na potência máxima do cooktop (280 ºC). Com uma colher de sopa, retire os macarrões da água. Reserve ambos.
  3. Volte a frigideira com a gordura ao cooktop, agora na potência mínima (60 ºC). Acrescente as gemas: nessa temperatura, elas vão cozinhar sem endurecer. Junte metade do queijo e a pimenta-do-reino. Cozinhe por alguns minutos, até começar a engrossar.
  4. Adicione a massa e umas duas colheradas da água do cozimento. Mexa até ficar cremoso, juntando mais água se for preciso. Ajuste o sal e sirva com o queijo restante.