História da gastronomia e da boemia do Rio também está ameaçada
O texto a seguir foi publicado na versão impressa da Folha em 4 de julho de 2018 sob o título “Boemia na UTI”.
Eu pretendia postar material inédito hoje, dando sequência às publicações temáticas sobre gastronomia brasileira, que me propus a fazer na Semana da Pátria. Mas o incêndio do Museu Nacional, no Rio, me fez mudar de ideia.
Republico o material sobre botequins históricos do Rio, que correm o risco de desaparecer, porque o assunto tem tudo a ver com o incêndio.
Ambos representam o descaso do brasileiro com a própria história. Não vou comparar importâncias aqui, mas tenho a certeza de que lugares como o Nova Capela e o Bar Luiz representam a história viva (por enquanto) do Rio de Janeiro e do Brasil.
Vê-los fechar seria uma perda irreparável.
Se você mora no Rio ou vai visitar a cidade, dê uma passada nesses botequins: aulas de história ficam ainda mais divertidas quando o programa inclui um chopinho.
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É fim de tarde na Lapa, zona boêmia do Rio antigo. As ruas meio decrépitas pululam de gente: trabalhadores em fim de expediente, com sede de cerveja. É assim na Lapa faz tempo. O Bar Brasil, na avenida Mem de Sá, funciona desde 1907. Ao lado, o Nova Capela é ainda mais antigo —abriu em 1903.
No ano da inauguração do Bar Brasil, foi feita a primeira viagem de carro entre São Paulo e o Rio. Demorou 26 dias. Ambos os botequins testemunharam a morte de Machado de Assis, a Revolta da Chibata, as duas Guerras Mundiais, a transferência da capital para Brasília, duas Copas e uma Olimpíada. Receberam políticos, diplomatas, artistas e a nata dos bêbados cariocas.
Mas o povo na Lapa não quer saber de história na happy hour. Quer cerveja barata e música alta. Amontoa-se ao redor de garrafas grandes —o popular litrão— em bares novos e sem alma. A poucos passos da sede da temida Vigilância Sanitária, jovens se refestelam com salgadinhos feitos em plena calçada num tacho de óleo escuro e malcheiroso.
No Bar Brasil, o alemão mais tradicional do Rio, só a mesa deste repórter está ocupada —os próximos clientes só chegariam 75 minutos mais tarde. No Nova Capela, é preciso interromper o jantar dos funcionários para ser atendido.
Parte dos botequins históricos do Rio está em apuros. A crise econômica e a sensação de insegurança ajudaram a espantar turistas. Clientes cariocas optam por ficar em casa.
A avaria atingiu todo o setor de bares e restaurantes, mas casas como o Bar Brasil e o Nova Capela têm uma fraqueza adicional: um modelo de gestão parado no tempo.
A queda na receita se percebe na qualidade do produto e do serviço. A decadência afasta ainda mais os clientes, e a féria despenca em espiral.
Mobília em petição de miséria, toalhas de mesa puídas e desleixo com a higiene são percebidos no Cosmopolita, de 1926, que se gaba da criação do filé à Oswaldo Aranha (coberto de alho frito).
O Bar Luiz, que resiste há 131 anos no centro, pede socorro para não desaparecer: a rua da Carioca hoje é um cemitério de imóveis desocupados.
“Aguento até o final do ano”, afirma Francisco Almussara, 84, o seu Chico do Capela. “Depois disso, não sei”, completa laconicamente o espanhol de Santiago de Compostela.
A crise econômica e de segurança teve forte impacto no setor de alimentação no Rio. “A queda no número de frequentadores chega a 40%”, estima Fernando Blower, presidente do SindRio (Sindicato de Bares e Restaurantes) da cidade.
A comparação se refere aos tempos em que o petróleo era a salvação e o então governador fluminense, Sérgio Cabral, tinha fama de grande gestor. O setor fechou cerca de 5% dos postos de trabalho desde 2015.
A recessão pegou com intensidade no subúrbio e no centro. A escassez de residentes fixos e de atividade aos fins de semana deixa mais agudas as agruras da cidade velha.
Mas a zona sul também sofre com debandada da freguesia com medo e sem dinheiro. As pessoas saem menos e, quando saem, voltam mais cedo para casa.
“Eu precisava expulsar os clientes para fechar o bar à meia-noite”, conta Kadu Thomé, 35, do Bracarense, instalado há 57 anos no Leblon. “Às 22h, já não tem mais ninguém, é só baixar a porta.”
Este é um botequim histórico que atravessa a turbulência com relativa tranquilidade. Terceira geração de um clã de comerciantes portugueses, Kadu modernizou o local e tem disposição para trabalhar duro atrás do balcão —ânimo que falta, compreensivelmente, aos octogenários.
“Botequins tradicionais são casas formatadas para outro tempo”, diz o sindicalista Blower, que serve coquetéis criativos e petiscos moderninhos no Meza, em Botafogo.
A passagem do bastão para a nova geração é crítica nesses estabelecimentos: quase nunca há alguém disposto a assumir a bronca. Que o diga Juan Tuña Souto, 80, outro galego de Santiago de Compostela.
Na tentativa de atrair os jovens da Lapa para o Cosmopolita, pendurou banners anunciando cervejas em promoção. Perguntado sobre quem iria herdar o botequim, seu Juan abaixa e balança a cabeça: “Tenho dois filhos, mas não sei se vão querer”. Sua voz é suave, quase inaudível. A boêmia das antigas sofre em silêncio.
COMERCIANTES CULPAM ESPECULAÇÃO, OBRAS E ATÉ O CHOPE DE MILHO
Que a crise e a criminalidade contribuíram para o declínio dos botequins históricos, todos concordam. Mas o consenso termina aí. Comerciantes apontam à Folha razões diferentes para a situação.
Para Rosana Santos, dona do Bar Luiz, a especulação imobiliária degradou o ponto. A rua da Carioca, antigo corredor comercial do centro, tornou-se um mostruário de placas de “aluga-se”.
E lista outros diversos fatores: a lei antitabagismo, a lei seca, obras do VLT, ambulantes e a proibição do estacionamento na rua aos sábados.
O Luiz, que tinha 48 funcionários em 2008, agora trabalha com 12. Rosana se diz otimista com apelos feitos na imprensa carioca. “Os clientes fiéis começaram a voltar.”
A revoada é minimizada por Juan Souto, do Cosmopolita. “Temos clientes, mas está muito difícil por causa da alta nos preços.” A carestia, diz, impede investimentos em manutenção e modernização.
Gustavo Riveiro, 39, do Bar Brasil, diz que a casa está no azul. “A frequência caiu 40% nos últimos dois anos, mas estamos nos segurando.” O chope pilsen, grande chamariz do botequim na época de vacas gordas, teria perdido prestígio.
“Vamos começar a trabalhar também com cervejas em garrafa. Já temos algumas artesanais e vamos servir ainda a lager puro malte. O pessoal quer cerveja sem milho.”
LAPA E CENTRO CONCENTRAM HISTÓRIA ETÍLICA
Cosmopolita
Fundado em 1926 aos pés dos arcos da Lapa, reclama a paternidade de um prato clássico carioca: o filé à Oswaldo Aranha, com alho frito, arroz, farofa e fritas, em homenagem ao diplomata, que frequentava o local.
Travessa do Mosqueira, 4, Lapa
Bar Luiz
Referência em chope e comida alemã. Nasceu em 1887 e mudou-se para a rua da Carioca em 1927. Na época da 2ª Guerra, chamava-se Bar Adolph —referência a um ex-dono. Pensando tratar-se de propaganda nazista, um grupo de estudantes tentou depredá-lo. Foram dissuadidos pelo compositor Ary Barroso, que ocupava uma mesa.
Rua da Carioca, 39, Centro
Nova Capela
Costumava ser o último bar a fechar as portas na Lapa. O que atraía figuras como Madame Satã e o cartunista Jaguar era a comida portuguesa farta e honesta servida madrugada adentro neste botequim de 1903. O cordeiro —consta como cabrito no cardápio— é o prato de resistência do lugar.
Av. Mem de Sá, 98, Lapa
Bar Brasil
Aberto em 1907, tinha até pouco tempo a reputação de servir o melhor chope do Rio, tirado de uma antiga máquina de bronze. Como a freguesia rareou, a bebida já não sai tão fresca do barril —a casa passou a trabalhar também com cervejas em garrafa.
Av. Mem de Sá, 90, Lapa