Restaurantes têm o direito de expulsar e humilhar clientes?

O grande Josimar Melo levantou a bola aqui na Folha: restaurantes têm o direito de escolher seus clientes? Podem barrar ou expulsar pessoas indesejadas? Um inimigo político, por exemplo?

A discussão se deu depois que a chef Helena Rizzo, do Maní, publicou uma foto da equipe da cozinha com o dedo médio em riste, em protesto contra o candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL).

Na opinião de Josimar, o dono de um restaurante pode vetar clientes de acordo com seus parâmetros éticos. Mas não pode usar como critério a etnia ou a religião – isso configura preconceito.

Concordo parcialmente com ele. Você não deve tolerar a presença do intolerável, mas o restaurante é uma casa de natureza mista: privada e pública ao mesmo tempo. Difícil estabelecer uma nota de corte que faça sentido para todos.

Vetar clientes desta ou daquela orientação política, por exemplo, me parece tão discriminatório quanto proibir gays. Se os sujeitos incomodarem os outros clientes, a história muda – mas isso vale para qualquer um.

O Estados Unidos, defensores máximos das liberdades individuais, dão poder para o comerciante escolher a freguesia. O dress code já pegou muito turista de surpresa.

Nos restaurantes mais caros e caretas, é praxe a exigência de terno e gravata. Em geral, para não constranger os acompanhantes do cliente maltrapilho, eles oferecem um arremedo de solução: há sempre um paletó do Mário Fofoca e uma gravata do Didi Mocó para emprestar.

Na minha visão, o dress code é preconceituoso, anacrônico e, mais do que isso, patético. Deixem a pessoa jantar de pijama e pantufas. Quem vai se sentir deslocada é ela –aposto que os outros frequentadores vão achar divertido.

Ser enxotado de um restaurante é uma experiência muito ruim. Humilha. Por mais que você saiba que aquilo não importa grande coisa, a expulsão atinge o fígado com força.

Comigo foram dois episódios, que eu me lembre. Um bastante enfático, o outro mais sutil –mas igualmente perturbador.

No primeiro, eu e minha mulher chegamos a um restaurante que queríamos conhecer. Lugar bem informal, jeito de boteco. A porta estava aberta, e havia uma ou outra mesa ocupada com clientes bebendo cerveja. Entremos, sentamos e chamamos a garçonete – que, descobrimos ali, também era a dona do estabelecimento.

– Oi, tudo bem? Que cervejas vocês têm?

– Olha, vocês não podem ficar.

– Por que não (sangue sobe à cabeça)?

– A casa está fechada. Só chamamos nossos amigos para beber conosco.

– Mas a porta está aberta…

– É que faz muito calor…

Minha mulher me conduziu para fora antes que eu começasse a espumar de raiva… ou um pouco depois disso.

O segundo episódio aconteceu há algumas semanas. Fomos, eu e minha mulher, comemorar o aniversário dela num restaurante que tem sido endeusado pela crítica moderninha/hipster/artesanal/sustentável: o Corrutela, na Vila Madalena.

Chegamos às 22h30. O lugar, ficamos sabendo na hora, fecharia em 30 minutos.

A garçonete que nos recepcionou não fez questão alguma de disfarçar a irritação com a chegada de clientes de última hora.

– Todas as mesas estão ocupadas. Se não vagar nenhuma nos próximos 15 minutos, não poderemos atendê-los.

Tudo bem, entendido. Fomos tomar algo no bar do restaurante. Se não rolasse, não teria rolado.

Mas aí a mesma menina volta cinco minutos depois, com o semblante desolado.

– Vagou uma mesa. Vamos lá?

Fomos.

Outro garçom nos atendeu. Rapaz simpático e solícito. Pedimos comida e vinho.

Os pratos do Corrutela são pequenos, para se compartilhar. Optamos por três deles: carne crua, polvo e língua de boi defumada. Frisei para o garçom que os queria nesta ordem. O prato frio primeiro, depois o polvo e a língua por último –num crescendo de intensidade de sabor.

A cozinha ignorou minha recomendação e mandou tudo junto.

– Vocês vão pedir mais algo? A cozinha vai fechar.

Suspeitei que estavam querendo nos apressar.

– Não. Acho que estamos bem.

Logo depois, já havíamos comido. Como disse, as porções são pequenas. O garçom legal voltou a nos abordar.

– Querem já a sobremesa?

A sobremesa já havia sido encomendada junto com os pratos salgados (um dos pedidos era um menu combinado). Mas não, não a queríamos ainda. A garrafa de vinho ainda estava pela metade. Era para ser um jantar romântico, diacho!

– Podemos terminar o vinho antes?

– Mas é claro! Nós esperamos.

Eis que reaparece a garçonete que nos atendeu na recepção.

– Mas não podemos esperar muito, pois a casa já está fechando.

Raiva. Consternação. Indignação. Tentei contê-las para não estragar o jantar. Fracassei na tentativa.

Tomamos nosso vinho aos golões, comemos a tal sobremesa –que era azul– e nos picamos dali.

Existem muitas maneiras de expulsar alguém de um restaurante. O uso de pequenos bombardeios verbais em intervalos regulares, como fez a equipe do Corrutela, é o mais perverso e humilhante. A casa dá tratamento pior a um cliente pagante. A um cliente que pagou tanto quanto todos os outros no salão.

Existe um entendimento tácito de que o horário que um restaurante estabelece para o fechamento é a hora para a chegada do último cliente – salvo quando o lugar explicita os horários da cozinha. Quem chega tarde deveria ser tão bem-recebido quanto os outros. Se não é para ser assim, que se mande embora o atrasildo atrasado sem acomodá-lo à mesa. Não é o melhor, mas é melhor do que servir mal.

Contribuiu para a minha péssima experiência no Corrutela a política de contratar apenas gente jovem e descolada. Gente inexperiente e com ganas de abraçar o mundo. Eu entendo –e aposto que seria um garçom terrível nos meus 20 e poucos anos.

Uma equipe jovem pode ser bem treinada, mas não era o caso. Some-se o fato de ser sexta-feira à noite e temos um restaurante louco para esfregar o chão na correria e cair na balada.

De novo, entendo. Mas me desculpem, eu não tenho nada a ver com isso. Eu só queria um jantar bacana.

Falando nisso, a comida. É incrível como a qualidade da experiência influi na percepção de uma refeição – tema que eu já abordei aqui e aqui.

A comida do Corrutela, tão elogiada pelos meus colegas, me pareceu comunzinha demais para tanto auê. A carne crua chegou com uma “emulsão de gemas orgânicas” que o garçom chamou, num ato falho, de maionese –e era isso mesmo. O polvo estava bastante bom, mas já comi melhores. A língua seria deliciosa se a acidez das cebolas, fermentadas naturalmente, não roubasse toda a cena. E a sobremesa, ovos nevados com creme inglês de jenipapo, tinha gosto de ovos nevados com creme inglês.

Só que era azul.