Gastronomia não vai salvar o mundo, mas pode salvar a si mesma
Não sou muito querido por algumas pessoas no meio gastronômico, porque gosto de avacalhar a megalomania reinante. Cozinheiros e jornalistas se acham. Atribuem ao seu trabalho um papel descabido.
Em grande parte, isso é autopromoção. Marketing de guerrilha para vender o próprio peixe por uns caraminguás a mais.
Ocorre que a repetição do mantra faz o mágico de festa infantil acreditar nos próprios poderes. Tem muito chef e influencer pensando que a gastronomia pode salvar o mundo.
Não que a gastronomia seja pouco importante. Pelo contrário: nada é mais importante do que se alimentar.
Minha implicância mira o pouco-caso do setor com a banalidade dessa importância. A comida é algo mundano, terreno, palpável. Querem fazê-la parecer elevada, sublime, etérea. Como se uma coisa fosse melhor do que a outra.
Peguei o personagem do chatonildo porque o vi abandonado num canto –há pouquíssimas vozes críticas na área da alimentação. Deponho agora minhas armas porque o momento exige união.
A gastronomia não vai salvar o mundo, mas pode –precisa– salvar a si mesma.
Os tempos que se aproximam representam um grande risco para todos os setores que dependem da criatividade. Vozes dissonantes não serão bem-vindas. Já não são.
Um exemplo desse cerco foi a reação à foto que a chef Helena Rizzo postou no Instagram, com sua equipe mostrando o dedo médio para o mundo. É agressivo? Mas claro! É de uma agressividade necessária para a época presente. Não podemos ser cordeiros na fila do abatedouro.
Caso alguém não saiba, Helena comanda o Maní. É um restaurante que rompe com a noção de que a alta culinária precisa ser careta. Mas também é caro e fica em um bairro da elite tradicional paulistana –parcela substancial de sua clientela. A atitude da chef foi de uma coragem exemplar. De agora em diante, vou chamá-la de Helenão.
As tropas do retrocesso atacaram Helenão com uma virulência descomunal e desproporcional. Inundaram o perfil da chef com ofensas e ameaças. Nas cozinhas profissionais, posar para fotos com o dedo em riste é uma brincadeira comum, meio tonta até. Mais ou menos como o “merda” que os atores dizem aos colegas para desejar boa sorte no palco.
Marcelo Corrêa Bastos, chef do Jiquitaia e do Vista, matou a charada. Ele comentou em um post de Facebook do jornalista Túlio Silva:
“Fazer revólver com os dedos, tudo bem. Agora, mostrar o dedo do meio é ofensivo: representa o pênis. E um pênis machuca mais que um revólver, né?”
A vaga reacionária vê perigo no pensamento contestador. Com razão, pois o discurso tosco dessa gente não sobrevive a dois ou três questionamentos. É por isso que a gastronomia precisa resistir. Ser crítica, provocadora, criativa.
Toda atividade cultural está ameaçada. A gastronomia, mais ainda. O reconhecimento da alimentação como elemento da cultura não é unânime, longe disso. Somos um elo frágil dessa corrente.
Se depender da casta prestes a se encarapitar no poder, vão sobrar só a costelinha do Outback, a coxinha do Ragazzo e o óleo trufado para dar um toque de sofisticação. Comida é combustível e –quer saber?– “tô pouco me lixano”.
Façamos como Helenão. Não abaixemos a cabeça para o tosco.