A gastronomia é uma pilha de dogmas medievais

Viés de confirmação. Pós-verdade. Fake news lavando cérebros a rodo nas redes sociais. Que tempos!

Menos, por favor.

O alcance das redes sociais criou um fenômeno de proporções inéditas, mas a essência da coisa não é pós-nada. É pré-histórica. Fake news é a fofoca da tribo –as pessoas sempre deram ouvidos aos fofoqueiros.

A realidade é o caos. Nosso cérebro faz um esforço tremendo para montar um quadro sensato com esse fluxo desordenado de estímulos. Pensar cansa, pensar dói. É muito mais confortável comprar uma versão pré-fabricada da verdade.

Aí que a religião se dá bem. Qualquer religião. Ela entrega uma narrativa à prova de contestação porque… veja bem, o negócio é acreditar. Você acha implausível um sujeito andar sobre a água? Incréu!

Fora do negócio da fé, o fato é o caroço do angu. É o estraga-prazeres gritando que o rei está nu. Ele joga contradição e incoerência no roteiro que alguém teve o trabalho de lapidar, aparar e polir. Melhor ignorar o fato para não gerar rebuliço.

A ignorância do fato impera na gastronomia.

Embora haja um esforço recente por uma abordagem mais científica, a cozinha ainda é um ofício medieval. Como a marcenaria e a sapataria. A transmissão de conhecimento se dá na relação entre mestre e aprendiz.

Um aprendiz confia em seu mestre. Ele o respeita. Assimila o ensinamento sem questioná-lo; quando se torna um mestre, repassa o que aprendeu sem ser questionado.

Muito do saber culinário tradicional se apoia em dogmas que não resistem a testes metódicos. Certas idiossincrasias alimentares caem diante da lógica mais elementar.

Pegue um cozinheiro italiano. Aqui estou em território conhecido: minha mãe vem de uma linhagem vêneto-napolitana de cabeças-de-granito.

O italiano acha que o mundo gira em torno do seu vilarejo. Se algo não é tradicional naquele paese, esse algo está errado. É um acinte, um absurdo. Ele arranca os cabelos em desespero e diz que vai se matar.

Certa feita, um chef italiano se horrorizou com o hábito brasileiro de comer macarrão como acompanhamento de carnes. Proteína num prato, carboidrato em outro, reza a cartilha.

“E o ragu à bolonhesa?” “É um molho.” “E a polenta com ossobuco?” “Polenta não é macarrão.” “E a massa com brachola?” “É macarrão com carne, não é carne com macarrão.” Ah, tá.

Por isso é que eu gosto de um site americano chamado The Food Lab, que submete a tradição ao fato. Um exemplo lacrador: botar o macarrão na água fria para cozinhar não interfere no resultado do prato.

Depois dessa, nunca mais poderei pisar no Bixiga. Un bacio a tutti!