Natal brasileiro vai na contramão da natureza

No universo idiotizado das redes sociais, a discussão sobre uvas passas ganha vulto quando o Natal se aproxima. Alguém se importa de verdade? Devo presumir que sim, já que a lengalenga se repete ano após ano.

Parece-me bastante óbvio que só come passas quem quer. O que escapa à maioria das pessoas: Jesus não vai descer da goiabeira para fulminar quem fizer uma ceia sem “comidas de Natal”.

Eu não aprecio demais o cardápio festivo de fim de ano. É tudo meio seco. Muita coisa muito doce. Falta um feijãozinho para ajudar a descer o lombo.

Se você não aderiu ao terraplanismo, deve entender que o Natal brasileiro vai na contramão da natureza. Importamos para a canícula do verão austral os rituais das terras congeladas do Norte. Quem mais sofre é o Papai Noel do shopping.

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Com exceção da farofa, a ceia natalina segue a tradição invernal europeia.

Nozes, castanhas, frutas secas (olha a uva passa aí, gente!), frutas cristalizadas e compotas entram em cena porque, em tempos passados, não havia vegetais frescos no dezembro boreal. A última colheita era celebrada no outono, em festivais pagãos que foram incorporados pelo cristianismo.

O festim das carnes assadas também remete ao inverno. Por alguns motivos lógicos.

Cada animal abatido, além de alimento, era uma boca a menos para ser alimentada –a escassez era braba. E o mais importante: em tempos sem refrigeração, os açougueiros precisavam trabalhar no frio para que a comida não estragasse.

Matava-se o porco. A carne fresca era servida nas festas, mas ainda sobrava muito. O restante era transformado em presuntos, linguiças, salames, carnes salgadas e defumadas.

Na estação quente, a dinâmica alimentar se invertia: as hortaliças frescas ganhavam a companhia comedida da charcutaria preparada no inverno.

Nós transplantamos uma cultura que não combina com o clima. Não precisamos fazer as coisas desse jeito apenas porque assim sempre se fez. Romper com a tradição pode fazer mais sentido do que mantê-la.

No Brasil, temos abundância o ano todo. Frutas secas para quem não gosta frutas frescas. Verduras e legumes para quem não gosta de frutas na comida. Passas e peru à califórnia para quem gosta do Natal à antiga.

Ano passado, encasquetei que queria uma ceia diferente. Acabei por cozinhar uma “cena navideña” cubana: paleta de leitão ao “mojo” (molho cítrico), “moros y cristianos” (arroz e feijão preto cozidos juntos), banana-da-terra frita. Tropical, ácido, úmido.

Companheiro Noel, o barbudo, desceu de vermelho naquela noite para nos entregar os presentes em homenagem ao nascimento do outro barba.