Água mágica de João de Deus engana tanto quanto as outras águas minerais
A Vigilância Sanitária de Goiás fechou a farmácia de João de Deus, acusado de abusar de algumas centenas de mulheres. O pajé vendia pílulas de placebo e água “fluidificada” –no jargão dos curandeiros espíritas, turbinada com “fluidos curativos”. Por meio de passes e outros ziriguiduns, imagino.
Por um golpe do acaso, topei com uma dessas garrafas outro dia. Não, não bebi. Se o sujeito tem a cara-de-pau de dizer que a água é milagrosa, vai saber o que ele mete dentro da garrafa.
É a maior picaretagem do universo.
Será?
Os católicos fazem o mesmo com a tal água benta. É exatamente o mesmo produto. Água supostamente enfeitiçada para operar milagres.
Pelo menos os católicos já tiveram dois milênios para aprender que água benta não espanta vampiros nem cura prisão de ventre. Ela se tornou um elemento ritual da liturgia –nenhum devoto com mais de três neurônios acredita na mágica da água benta.
A água benta e a água do João de Abadiânia são exemplos extremos.
Toda a indústria de água mineral sempre lançou mão de propaganda eticamente duvidosa. Afinal, como se destacar em um ramo em que tudo é quase igual? Assim como no caso da vodca (que merece um texto só para ela), é preciso torcer, contorcer e distorcer a realidade para aumentar o valor agregado do produto.
A bem da verdade, a humanidade tem um fetiche milenar pela água mineral.
Antes de descobrirmos que a assepsia era a solução para evitar as mais sortidas perebas, água segura era o artigo mais valioso de uma comunidade.
Já passei uns dias em Lindoso, aldeia de pedra no norte de Portugal, com quatro centenas de habitantes. O único trânsito do lugar é de bois –bois com longos chifres pastoreados por velhinhos de boina.
Ao nos ver, um desses anciãos fez questão de nos levar à sua fonte de água. A mais pura da vila. Achamos engraçado. Mais tarde, outro aldeão fez o mesmo com outra fonte. Lindoso preza sua água mineral.
Antigamente era assim em todo lugar. Ser dono de uma fonte de água pura significava poder e prestígio. Nasceram as estâncias hidrominerais. E as cascatas a respeito das propriedades da água. Dura, mole, fluoretada, ferruginosa, magnesiana, radioativa. Cada uma com supostos poderes medicinais: uma é diurética, outra é boa para o fígado etc. etc.
Eu ainda era criança quando passei férias com meus pais em Águas de São Pedro, no hotel do Senac. O restaurante do lugar, na época, tinha uma carta de águas de bica. Ofereceram-nos uma água sulfurosa, pretensamente boa para o sistema digestivo.
Ela tinha cheiro de ovo podre. Eu tive um piriri sem precedentes.
Não quero dizer que toda água mineral é rigorosamente igual –qualquer um que já tenha bebido meia dúzia de tipos percebeu alguma diferença entre eles.
Meu ponto é: as diferenças sensoriais e os efeitos terapêuticos das águas são largamente exagerados pela propaganda.
Agora, por exemplo, existe um culto à tal água alcalina.
Por cima disso, entra o marketing de grandes grupos que faturam no setor da água. Água do degelo alpino, água dos fiordes da Noruega, água da condensação da umidade do ar da Amazônia, água da lagoa secreta das sereias de Madagascar.
Para efeitos de hidratação e de saúde, a água da torneira é tão boa quanto a mineral. Quando não é, trata-se de omissão grave do Estado –não de virtudes da fonte ou de sua concessionária.
A água de Abadiânia era vendida a R$ 10. Você encontra marcas que cobram o dobro disso, sem promessa de milagre.
É muita picaretagem. João de Deus é só mais um nesse negócio.