Existe amor na comida de SP?
São Paulo é uma das cidades mais cruéis do mundo. Impessoal, imunda, caótica, feia, monstruosa.
Têm culpa os paulistanos? Individualmente, não. Coletivamente, todos temos. O leviatã de Piratininga não nasceu gigante –ele é fruto de uma sequência de decisões ruins que remonta a 1554, quando os tupiniquins engoliram a conversa fiada dos jesuítas.
São Paulo é um entroncamento viário desde antes da chegada dos portugueses. Um entreposto. Rota de passagem que atrai pessoas sem vínculos, atrás de dinheiro rápido. Bandeirantes, imigrantes e corretores da bolsa, por exemplo.
São Paulo nunca teve planejamento de longo prazo. Nunca teve pudores em demolir o velho para erguer sabe lá o quê.
É o velho oeste. O amor não viceja em lugares assim.
Aí vem um “empreendedor” (aspas propositais e gênero indefinido). E abre um restaurante batizado com um nome feminino em desuso. Iolanda, Teodora, Gertrudes, Olga. No subtítulo da placa, “cozinha afetiva”.
PAUSA PARA O MERCHAN: agora você tem receitas exclusivas da Cozinha Bruta no Instagram. Acompanhe também os posts do Facebook e do Twitter.
Amigas e amigos, brasileiras e brasileiros: que diabos é “cozinha afetiva”?
É uma estratégia de vendas mais velha do que andar para a frente. Ela atende por múltiplos nomes, com diferenças sutis entre eles.
O mais banal é “comida caseira”. Algo que, logicamente, não existe além do âmbito de uma residência. Mas que se tornou um caô encampado não apenas pelos quilões –virou lugar-comum também na lasanha congelada e nos suco em caixa de papelão. Aquele dos gominhos.
Um pouco menos surrada é “comfort food”, comida reconfortante. Põe-se uma farofa de banana ao lado do magret de pato. Um purê de mandioquinha para acompanhar as vieiras. Uma canja de galinha d’angola na entrada, e voilà! Um jantar cinco cifrões.
Já a “cozinha afetiva” fica no meio do caminho. Põe um pouco de capricho extra na apresentação de pratos tipicamente caseiros: picadinho, feijoada, peixe ao molho de camarão, torta de palmito. Um ovo pochê aqui, um shimeji ali, salsinha incidental em cima de tudo. Já pode dobrar o preço da refeição.
Qualquer empregada doméstica executa a “comida caseira”. A “comfort food” e a “cozinha afetiva”, por sua vez, implicam a supervisão de uma matriarca. De uma figura materna. Isso apenas na fantasia barroca da nossa classe média, que fique claro.
Não existe amor na cozinha de um restaurante? Pode até existir, mas é mais raro do que cabeça de bacalhau.
Ele certamente não está num lugar de almoço com decoração fofa nas imediações da Berrini ou da Faria Lima. Essas pessoas só querem pegar o seu dinheiro em troca de sobremesas açucaradas demais. É o business paulistano em sua forma mais dissimulada.
Quer comida afetiva? Cozinhe em casa. Não seja trouxa.
.