São Paulo é um monstro que destrói a própria gastronomia
Fuçando na internet atrás de assunto para escrever, topei com um ótimo artigo do sociólogo Carlos Alberto Dória, co-autor do livro “A Culinária Caipira da Paulistânia” (Três Estrelas, 2018).
Resumo bem chinfrim: Dória afirma que São Paulo desdenha as raízes indígenas de sua culinária tradicional. Prefere o couscous marroquino ao cuscuz de milho dos guaranis.
A regra se aplica a quase toda manifestação cultural que brote em solo paulistano.
Nada nesta cidade é feito para durar. São Paulo, com todos os milhões de almas que a habitam, ainda é uma vila de garimpeiros. Para cá correm todos os forasteiros em busca de dinheiro. O plano nunca é fincar raízes. Quando há raízes, elas são rasas.
Isso não é necessariamente ruim.
É o dinamismo que faz de São Paulo um lugar interessante e empolgante. Aqui tudo muda numa velocidade espantosa. Piscou, perdeu.
Vale para a arquitetura, para a composição étnica da população, vale para a gastronomia.
As origens indígenas são apenas um exemplo ancestral desse ciclo contínuo de destruição e reconstrução.
Em tempos mais recentes, temos a aniquilação das cantinas ítalo-paulistanas. As cantinas, com seus pratos fartos cheios de molho e o clima macarrônico, já foram a grande atração da mesa paulistana. Vinha gente de fora para conhecê-las.
Quando a comida italiana mais autêntica se tornou acessível em São Paulo, as cantinas foram postas de escanteio imediatamente. Hoje elas vegetam.
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Algo semelhante está em curso com a pizza paulistana.
Só gente velha vai à Camelo ou à Monte Verde para comer frango frito antes da pizza de massa fina. Ok, exagero. Mas é uma tradição antiquada, démodé.
E é algo, até onde eu sei, paulistano até a medula. Como é argentino o hábito de comer pizza com fainá –uma massa feita de farinha de grão de bico, sobreposta à pizza como um sanduíche.
A pizza em São Paulo vai muito bem, obrigado. (Apesar das aberrações encontradas nos serviços de entrega.)
A pizza daqui se renovou. Foi globalizada. Temos muitas pizzas moderninhas e temos pizzas napolitanas –coisa que, apesar da idade avançada, é uma moda gastronômica recente em toda parte.
Já a pizza de que São Paulo se orgulhava tanto no século passado, de massa fina ou de massa grossa, cobertura farta e muito queijo, perdeu prestígio.
A rede Bráz fez um grande trabalho de resgate e aperfeiçoamento dessa pizza tradicional, no final dos anos 1990. Mas negócio é negócio: precisa evoluir. Hoje, a Bráz se aproxima cada vez mais do estilo internacional de pizza adotado pelas casas mais descolex e trendy. Eu faria o mesmo.
E arrisco dizer que a próxima da fila é a comida japonesa.
São Paulo foi o epicentro da popularização do sushi no Brasil. A culinária nipônica da cidade, porém, tem muito mais do que peixe cru e arroz. Fora do hype dos lounges que vendem atum com uísque e energético, existe uma sólida tradição construída pelos muitos imigrantes de origem japonesa.
Ocorre que os mantenedores dessa tradição já estão velhos ou envelhecendo. Tenho sérias dúvidas quanto ao interesse das novas gerações em manter as coisas do jeito que são hoje.
Você já foi à Liberdade recentemente? Os restaurantes velhuscos de porta de bambu estão dando lugar a casas metidas a modernas, de origens asiáticas diversas. É um tal de “wok” aqui, de “grill” ali e de “noodle” acolá.
Bom é que o monstro destruidor de tradições sempre constrói outras por cima do entulho.
Assim é São Paulo. Eu até que gosto.