Devorei um bichinho de estimação: estava delicioso
Apenas no último dos três dias que passei no Equador* pude provar o tão famoso cuy: nome que os andinos dão ao porquinho-da-índia (ou preá). O bicho é chamado assim porque faz “qüi, qüi, qüi”. Não é uma graça?
Pedi o prato no Mama Clorinda, um restaurante bastante popular em Quito. O cuy estava simplesmente delicioso. Carne macia e úmida, com bastante colágeno, como leitão ou vitela; tempero fantástico e pele pururucada à perfeição. Acompanhavam molho de amendoim, batata, abacate e tomate.
Postei a foto do meu almoço no Instagram, já imaginando a reação que viria.
Não falhou: em poucas horas, a publicação já estava entre as cinco mais comentadas do meu perfil.
Havia gente elogiando a foto. Uma minoria.
O tom geral dos comentários era de reprovação. Por dois motivos:
- Aaaaain, que nojo!
- Ui, que peninha do bichinho tão fofo!
Antes de entrar no mérito da discussão, uma observação: esse pessoal precisa se decidir se o porquinho-da-índia é fofo ou nojento. Os dois não dá para ele ser.
Falemos primeiro do nojo.
O que leva alguém a achar o cuy nojento? Parece um rato? Parece. Mas é peludinho e sem rabo. É fofo, há de se admitir.
O que faz um animal ser nojento demais para nos servir de alimento?
Uma aparência feiosa? Camarão, lagosta, todos os moluscos, o peru e alguns peixes entram nessa categoria.
É sujo? Fede? Come coisas asquerosas? Gente, assim é o porco –a mais deliciosa das carnes. E também, mais uma vez, o camarão. O lixeiro dos mares.
Passemos à fofura do cuy.
Por que não devemos comer animais fofos? Eles são melhores do que os feios e não merecem ser mortos?
Leitão, cordeiro e coelho. Três animais fofíssimos que fazem parte da dieta humana. Com exceção do coelho, nenhum deles faz sucesso como mascote –essa é, provavelmente, a razão para a rejeição ao coelho ser maior nas camadas “civilizadas”.
Não nos parece uma boa ideia mandar para a pança os bichos de que cuidamos como se fossem bebês. Por isso não devoramos cachorros, como o fazem coreanos e chineses.
E o cuy? Não é um pet popular o suficiente para despertar a revolta dos defensores de animais de estimação.
Nos Andes, aliás, a relação com o preá é ambígua. Os indígenas o criam dentro de casa como mascote, mas não hesitam em comer o “qüiqüi” quando ele fica gordinho. É mais ou menos a mesma coisa que acontece em fazendas com galinhas e bezerros.
O humanoide urbano desconhece a origem da nossa interação com as espécies animais.
A relação gente-bicho sempre foi e ainda é utilitária. Aqueles de carne saborosa (porco) são criados para o abate. Há os que fazem trabalho pesado (bois, cavalos, burros), os que nos fornecem alimento de forma regular (galinhas, vacas) e os que protegem nossas casas de ameaças (cães, gatos).
Via de regra, os animais de trabalho são abatidos quando não podem mais servir a esse fim. Mas acabamos desenvolvendo uma relação especial com cachorros e gatinhos, que foram admitidos no âmbito doméstico mais íntimo.
Porquinho-da-índia tem na pet shop, mas não é cão nem gato. Não é o fato de ser mascote que causa repulsa.
É uma combinação de fatores.
Tem uma boa dose de xenofobia –que primitivos, esses mamelucos selvagens!
Tem também a apresentação do prato: o preá inteiro, com cabeça e tudo. Ela ofende o verniz de civilização do homem moderno.
O bicho espalmado no prato nos lembra de que também somos animais que matam outros animais para comer.
Isso provoca desconforto em bastante gente. Alguns digerem a informação de acordo com seus princípios e se tornam vegetarianos.
Outros entram em parafuso porque alguém faz questão de lhes mostrar o que eles preferem não ver. Que o hambúrguer e a salsicha não nascem embalados no balcão refrigerado do Carrefour.
Esses aí são os hipócritas.
Ah, e quer saber por que chamamos o cuy de porquinho? É tão óbvio que eu não vou dizer. Coma para descobrir.
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*O jornalista Marcos Nogueira viajou a Quito (Equador) a convite da Gol Linhas Aéreas.