Cozinha era lugar de mulher em 1964
Amanhã, pela primeira vez nas últimas três décadas, passaremos o 31 de março sob um governo que se enche de júbilo para celebrar o golpe militar de 1964.
Que Jair Bolsonaro teça loas à ditadura não surpreende ninguém. O que assusta é a reverberação desse sentimento em uma parcela significativa da população –gente que é jovem demais, que tem memória débil ou que estava enrustida desde a redemocratização.
É um clamor febril, delirante, por um retrocesso quase literal. As franjas radicais da sociedade pensam ser possível enquadrar os desviados (a minha cambada) nos padrões de comportamento de 55 anos atrás.
Nem o Irã fundamentalista conseguiu feito semelhante. Os aiatolás sonhavam com um paraíso islâmico de ares medievais, pio e submisso. Criaram um monstrengo esquizofrênico. Na esfera privada, a elite laica ainda toca a vida como nos tempos do xá –com a anuência hipócrita do clero. E a repressão está sempre anos-luz atrás das redes sociais.
Proponho, no entanto, um inofensivo exercício. O que encontraríamos se voltássemos a 1964? Apenas no âmbito da cozinha, pois a Folha tem colunistas mais qualificados para falar de política.
Pesquisei, no acervo do jornal, as edições dos dias subsequentes ao levante dos milicos. Primeiro de abril caiu numa quarta-feira. Necas de pitibiriba sobre comida, culinária, restaurantes ou botecos.
No dia 2, só um informe publicitário dos óleos vegetais Cestol. A companhia se dizia empenhada em honrar os pedidos dos clientes, apesar da crise das abastecimento. Eram dias complicados, aparentemente.
De quinta-feira até sábado, as únicas aparições gastronômicas eram pequenos anúncios. Do restaurante francês La Casserole, ainda hoje operante no Largo do Arouche. A casa trazia uma comodidade rara na época: ar-condicionado.
A cozinha só teria destaque na edição dominical. Em 5 de abril de 1964, a manchete da Folha noticiava o autoexílio do presidente deposto, João Goulart, no Uruguai.
Páginas inteiras de um caderno chamado Folha Feminina têm a comida por tema. Porque, em 1964, cozinha era lugar de mulher. A cozinha doméstica, vale frisar –o ambiente profissional sempre foi masculino.
Uma matéria intitulada “Para decorar a cozinha” ensina a transformar colheres de pau em bonecos com chapéu de mestre-cuca. A página seguinte abre com um texto sob o seguinte título: “Agarre seu homem pelo estômago”.
A edição é coroada com uma coluna sobre dietas. Vou até usar caixa-alta para anunciar o título. Ele merece: “CONSELHOS ÀS GORDAS”.
Sei que eu precisaria me dedicar a outro ofício para trabalhar em 1964. Presumo ainda que nenhuma mulher pensante gostaria de retroceder àquela época, fosse qual fosse o regime.
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