O porco venceu o preconceito no país da feijoada
Porco = malfeito, imundo, mau-caráter, obsceno. Está assim nos dicionários.
Muitos anos atrás, eu apurava uma reportagem sobre o porco (o animal) para uma revista de interesse geral. O texto abordava a inteligência do Sus scrofa e sua relação com a espécie humana –o que inclui, é lógico, nossa tara por bistecas, linguiças, costelinhas, presuntos e bacon.
Um dos entrevistados era representante de uma associação de criadores. O indivíduo passou a conversa toda tentando me convencer a não usar a palavra “porco” na revista. A denominação “suíno” era mais palatável, argumentava o fazendeiro.
Não atendi ao apelo do cidadão. Por acaso alguém come coxinha de galináceo? Ou faz aquele belo molho de solanácea com bovino triturado para acompanhar o macarrão?
O preconceito contra o porco é tão grande que se entranha mesmo naqueles que vivem de criar porcos.
Por isso, a inclusão da Casa do Porco em uma lista de 50 melhores restaurantes do mundo tem importância histórica.
Listas são como certas partes da anatomia humana –cada um tem a sua–, mas a “50 Best Restaurants” se destaca pela gigantesca repercussão no meio gastronômico e além dele.
Se já era difícil conseguir uma mesa na Casa do Porco, agora será impossível. O mundo ficou sabendo das peripécias porcinas de Jefferson e Janaína Rueda.
O que eles fizeram é monumental. Meteram o porco no nome do restaurante, desafiando a sensatez comercial. Atraíram multidões ao emporcalhado (ops!) centro de São Paulo com ceviche de porco, sushi de porco, tartar de porco.
A casa dos Rueda é, salvo engano, o primeiro restaurante especializado em carne de porco a figurar na lista dos topzeras internacionais. Não é uma proeza?
A repulsa ao porco não é exclusividade brasileira. O judaísmo e o islamismo privam os fiéis de delícias como o torresmo e a mortadela. O ocidente cristão situa o porco em algum ponto entre o êxtase e a impureza. Bem compreensível.
O caso brasileiro é bastante peculiar. A feijoada, prato de exportação e símbolo da cultura brasuca, leva quase tudo do porco. Couro, lombo, pé, orelha, rabo, focinho, toucinho, paio, linguiça. Um chiqueiro borbulhante que harmoniza com batida de limão.
Ainda assim, tentamos esquecer que a calabresa um dia foi porco. A condição suína do suíno é mascarada pelo mercado para não melindrar o consumidor.
Isso, afortunadamente, está mudando no Brasil e no mundo. A palavra “porco” já tem aparecido desavergonhada em embalagens. Já há quem ouse comer carne de porco malpassada –algo inimaginável há pouco tempo. Até Palmeiras incorporou o apelido pejorativo que os rivais o impingiram.
Na terra da feijoada, o porco construiu a sua casa. E ela não é de palha.
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