Churrasco de baleia é o retrato de um país miserável
Eu era foca –no jargão das redações, jornalista inexperiente– quando minha chefe no extinto “Notícias Populares” contou uma história de arrepiar.
Pouco tempo antes, ela mesma era uma jovem repórter da editoria de desgraças gerais. Então, um caminhão carregado de carne tombou para dentro do rio Tietê, na cidade de São Paulo. Só quem mora em Marte não sabe o quão infecta é essa água.
A notícia se espalhou, e moradores de favelas próximas acorreram para a Marginal. O trânsito virou um furdunço. As pessoas mergulhavam no rio para saquear o caminhão.
Minha futura chefe foi escalada para entrevistar essa gente. Teve uma recepção calorosa –afinal, era raro a imprensa dar alguma atenção aos favelados da Marginal Tietê. Chegou na hora do almoço. Ou do jantar, tanto faz. Talvez nem fosse hora de refeição. Para quem passa fome, qualquer hora é hora de comer carne.
O steak tîetée chiava na frigideira quente. Ofereceram-lhe um pouco. Ela não se sentiu em condições de recusar. Comeu. A. Carne. Pescada. No. Rio. Tietê. Até hoje esse filminho passa na minha cabeça.
Episódio semelhante –de carga dramática mais intensa, porém– ocorreu em Salvador nesta semana.
Uma baleia jubarte de quase 40 toneladas encalhou em Coutos, numa praia poluída ao lado da linha do trem de subúrbio. Os moradores da região tentaram salvar o animal, mas ele morreu na areia.
Então o povo correu a buscar suas peixeiras e baldes para retalhar a jubarte. Estima-se que dez toneladas de carne foram removidas da baleia. Teve churrasco de Moby Dick na baía de Todos os Santos, como mostram os vídeos que circulam na internet. Ainda bem que o YouTube não transmite cheiro.
Eu comeria bistecão de baleia facilmente, se estivesse num restaurante bacana do Japão ou da Escandinávia. O problema do churrasco baiano é outro.
A carne de animais mortos de morte morrida é um dos poucos tabus alimentares universais. Até o canibalismo goza de mais popularidade. Sabe-se lá o que levou a baleia a nadar em águas rasas até encalhar. Não é improvável que ela estivesse doente e, portanto, desorientada.
O saque à carne de baleia é um retrato da miséria do Brasil. De uma multidão de pessoas que deixam a dignidade de lado para forrar o bucho.
Quem não tem baleia pode comer cachorro atropelado, caçar ratazana no córrego ou simplesmente revirar o lixo, talvez a xepa da feira. As opções são muitas. Aqui em Ipanema, os comerciantes se condoem dos moradores de rua e lhes dão quentinhas de arroz com ovo. Fome ninguém passa, para parafrasear certo político do vale do Ribeira.
Se você acha que existe algo para se comemorar neste 7 de setembro, você está mais doente do que a baleia que morreu na praia.
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