É impossível se acostumar a comer cocô

Dizem que o ser humano se acostuma a qualquer situação. Isso é meio verdadeiro.

Já faz alguns anos, eu me acostumei ao estilo de vida pobretão-chic –fui expelido do mercado formal de trabalho e precisei me adaptar. Meu tombo foi pequeno perto do caldo de mar profundo que muitos brasileiros engoliram –uberizados, precarizados, sem perspectiva de aposentadoria.

Culpa das circunstâncias, de um agente etéreo e impessoal.

Mesmo quando o ladrão tem nome e endereço, você é capaz de acatar mudanças radicais. Na cadeia, por exemplo. A acomodação ocorre por penitência ou por interesse. Um criminoso arrependido aceita docilmente a sua sina; um psicopata será dissimulado para ter bom comportamento, sair logo e voltar a cometer crimes.

Os exemplos podem ser menos dramáticos. Em situações de trabalho, todo mundo já engoliu sapo na vida.

Com todo o respeito pelos outros ofícios, vou usar o jornalismo de gastronomia para demonstrar meu ponto de vista. É o meu terreno seguro.

Vocês devem imaginar que eu talvez não goste de uma ou outra comida. São raros os que comem absolutamente tudo com prazer.

Quando você tem o trabalho que eu tenho, precisa atropelar essas frescuras alimentares. Comi sardinha, fígado, buchada, ostra, pepino, alcaçuz. Comi até bicho-da-seda, uma larva francamente asquerosa. Aprendi a amar coentro. Tolero um monte de outras coisas em nome do trabalho.

Só que há coisas com as quais você nunca se acostuma. Você pode até aguentar para sobreviver, mas não se resigna.

Não dá para se acostumar com um ministro da Educação semianalfabeto e fanfarrão.

Não dá para se acostumar com o fato de que o governo se guia por um maluco que contesta o heliocentrismo.

Não dá para se acostumar com o poder sendo entregue a um pândego que chama a Fernanda Montenegro de sórdida.

Não dá para se acostumar com um músico que propaga teorias conspiratórias cretinas a respeito dos Beatles e ganha um cargo polpudo.

Não dá para se acostumar com o Salles ou o Araújo ou a Damares.

Não dá para se acostumar a alguém como Bolsonaro. Para usar palavras já impressas nesta Folha, um misto de leviandade e autoritarismo.

Não dá para engolir a versão oficial do massacre de Paraisópolis.

Tem um gado que se acostumou a comer grama e capim. Eu nunca vou me acostumar a comer bosta.

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