Paraisópolis tem cerveja artesanal, burger gourmet e gente igual a você
Para o paulistano de classe média alta, favela é território proibido. Se o Waze manda entrar numa, é pânico certo. Sem minimizar os riscos reais da criminalidade real que existe nas comunidades, essa fobia distorce a realidade. O cidadão “de bem” pensa na favela como uma incubadora de degenerados.
Essa visão torta ajuda a normalizar absurdos como o ataque da polícia ao baile funk em Paraisópolis (zona sul de São Paulo), que deixou pelo menos 9 jovens mortos na madrugada de domingo.
Não me excluo dessa classe ignorante e contaminada pelo medo. Sem contar as incursões que fiz na minha breve carreira de repórter policial (lá vão quase 30 anos), entrei três vezes em favelas. Todas foram no Rio.
A elite carioca não é melhor nem pior do que a paulistana. Ocorre que a topografia e a ocupação urbana no Rio favorecem o convívio –não tão harmonioso assim– da turma das favelas com o pessoal do asfalto. Não há como ficar longe das favelas em Ipanema, Copacabana, Gávea e outros bairros de gente com grana.
Assim, existe um pequeno trânsito das pessoas desses bairros para conhecer o que há nos morros. Eu fui duas vezes ao bar do Omar, na entrada do Morro do Pinto (zona portuária do Rio). É uma casa festiva que se tornou ponto de encontro de gente de esquerda da cidade toda.
E fui uma vez a um lugar chamado Mirante Rocinha –que fica na Rocinha, como se pode deduzir. Esse é um pouco esquisito. Não por ser em uma favela, mas por ser um bar de playboy incrustrado na favela. Tem pulseirinha de balada para entrar. Drinques coloridos. Culinária gourmet –excelente o pastel de camarão, por sinal.
Em São Paulo, não desci do carro quando o Uber que me levava ao Panambi passou pela avenida Hebe Camargo, na mesma Paraisópolis do massacre de domingo. Vi, pela janela, o movimento dos bares. Um deles anunciava cervejas artesanais. Do alto do meu preconceito, fiquei espantado.
Preciso voltar lá. Paraisópolis é uma cidade dentro da cidade, com uma oferta de serviços que se estabeleceu apesar da ausência do estado. Tem hamburgueria, restaurante nordestino, casa de acarajé. Enquanto não vou lá, reproduzo os verbetes do Guia Prato Firmeza, uma iniciativa muito bacana da Escola de Jornalismo É Nóis –um roteiro de bons lugares para comer na periferia paulistana. O textos foram escritos por Glória Maria e Alexandre Ribeiro.
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Chubiba Bar
Av. Hebe Camargo, 14 – Paraisópolis, São Paulo
Quem passa pela avenida Hebe Camargo, principal via de Paraisópolis, logo repara nas pessoas circulando em suas calçadas, que fazem da avenida um verdadeiro local de lazer e ponto de encontro. Um dos principais points da região para saborear deliciosas refeições é o Chubiba Bar, bar e cozinha que tem trazido o sabor nordestino à comunidade. Luiz Pereira, 45 anos, e Evandro Bezerra, 38, são sócios desde 2016. Juntos, decidiram abrir um bar e servir comida nordestina.
Luiz é cearense, trabalhava como porteiro, mas como sempre gostou de cozinhar, assumiu a parte de fazer os pratos que seus clientes adoram. Evandro, pernambucano, passou a vida toda trabalhando de garçom, outras vezes de ajudante cozinha; como não poderia deixar de ser, ele é o responsável por atender e servir os clientes. Uma das refeições mais pedidas é a tilápia frita inteira, acompanhada de salada e baião de dois, que custa apenas R$ 30. Também há sarapatel por R$ 15 além de outras opções como a galinha caipira temperada com sabor baiano, marinada no vinho. Seu principal segredo é deixar a galinha descansando nos temperos de um dia para o outro ainda congelada e, para ficar mais saborosa e com o sabor da roça, é servida acompanhada de pirão.
Atualmente, Luiz também trabalha como jardineiro na parte da manhã, pois o atendimento no Chubiba Bar só começa, de segunda a sexta, às 17h e, nos finais de semana, com a rotina mais pesada, inicia às 10h. As entregas são feitas somente aos sábados e domingos, no bairro de Paraisópolis e arredores.
Ele conta que, em um dia, vende em média 60 peixes e que, de vez em quando, surgem surpresas, como uma família com cerca de 30 pessoas que, após um batizado, foi comemorar lá por saber da comida deliciosa. Sem aviso prévio, ele teve que se virar para atender as 30 pessoas e mais as entregas que não paravam. O local da alimentação é ao ar livre, com mesas e cadeiras em frente ao estabelecimento. A cozinha é aberta para que todos os clientes vejam como a comida é preparada. O perfil dos fregueses é, em sua maioria, de famílias que se reúnem a fim de comer uma boa refeição. Amigos também se encontram depois do trampo para beber uma breja, jogar papo fora e, claro, aproveitar as refeições e porções generosas.
Luiz e Evandro gostam do que fazem. E fazem com o aprendizado que ganharam na época em que viveram no Ceará e em Pernambuco, estados que têm em comum o sabor da típica comida nordestina.
Oh! Glória Artesanal Burguers
Rua das Jangadas, 72 – Paraisópolis, São Paulo
Desde muito novo, Marcelo Vicente trabalhou em lanchonetes, restaurantes e hamburguerias famosas do Centro como a Hamburgueria Nacional e a Lanchonete da Cidade, mas sempre quis ter o próprio negócio.
Depois de trabalhar com diferentes tipos de comida, ele teve a ideia de vender hambúrgueres na sua casa. Um investimento de R$ 500 deu conta da chapa e dos utensílios necessários. Logo depois, um amigo lhe ofereceu um espaço, ele aceitou e, já no dia da inauguração, as vendas bombaram. Com mais grana, ele alugou um espaço melhor, caprichou na decoração e inaugurou o Oh! Glória Burguers. O nome é em homenagem a Deus e o logotipo tem a imagem de uma figueira (símbolo de prosperidade), já que Marcelo é evangélico.
Desde que abriu, o Oh! Glória tem chamado a atenção em Paraisópolis – ali a comida é de primeira. O hambúrguer é caseiro, os pães são artesanais (ele compra diretamente de fornecedores especiais) e a lanchonete faz a própria maionese. Ele conta que decidiu fazer os próprios hambúrgueres porque é um diferencial – o gosto é diferente daqueles que são comprados no mercado. Além disso, Marcelo prefere fazer tudo o mais natural possível: além de ser mais saudável, é uma novidade deliciosa.
Todos os lanches de 200 g são acompanhados de batata e o cardápio também conta com 15 complementos opcionais diferentes. O mais pedido é o Big Pig, que leva cheddar, cebola e bacon. Além dos hambúrgueres tradicionais, há também os lanches especiais como o hambúrguer de costela e a costela ribs. Para refrescar, há sucos naturais, milk-shake, açaí na barca e outras opções. O local só não vende álcool.
O Oh! Glória fica no coração da quebrada, mas seus hambúrgueres vão muito além através do delivery. O sabor, portanto, pode chegar a muitos lugares, mas são produtos de Paraisópolis, mostrando que na periferia também tem comida (muito) boa.
Dona Fran
Rua das Jangadas – Paraisópolis, São Paulo
Sabe aquela cheirosa e saborosa comida de vó? Preparada com bastante alho picadinho, temperos naturais, nenhum condimento industrializado e todo amor e carinho? Em Paraisópolis tem. E a boa notícia é que Dona Fran, a cozinheira, resolveu abrir as portas da sua casa para cozinhar para a comunidade.
Francisca Macedo dos Santos, 46 anos, é maranhense. Trabalhou durante muitos anos como empregada doméstica, e, nesse meio tempo, sempre esteve em contato com a cozinha. Seu desejo era que as pessoas experimentassem sua comida. Quando deixou o trabalho doméstico, chegou a ser camelô e a vender açaí, mas os negócios não deram certo. Dois amigos, encantados com seu tempero, a desafiaram a abrir um restaurante – assim surgia, no ano de 2010, o Restaurante da Dona Fran.
Todos os dias ela levanta às 7h para começar a preparar o almoço. O trabalho, no entanto, começa bem antes: as carnes ficam descansando no tempero de um dia para o outro. Não há muita variação no cardápio. A base sempre é composta por arroz, feijão, salada, macarrão e farofa de bacon. O que varia são os tipos de carne, sempre três à escolha do cliente. Frango à milanesa, coxa de frango assada, costela e feijoada são algumas das opções. Com R$ 27, duas pessoas comem muito bem.
O restaurante, em si, não é exatamente um restaurante. É a sala da casa da Dona Fran. Os clientes compartilham as mesas e podem ver Fran em ação, já que a cozinha fica logo ao lado. O local fica aberto para o almoço, mas o horário é flexível: ela conta que, em alguns dias, clientes aparecem para comer às 5h da tarde.
Apenas Dona Fran e sua sobrinha cozinham. Elas cuidam do almoço, servido de segunda a sábado, e também das encomendas. A comida da cozinheira já circula por toda Paraisópolis em entregas a pé, e sua fama já ultrapassou os limites da quebrada. Dona Fran conta que já recebeu pedidos no Portal do Morumbi, mas não pôde atendê-los por conta da distância.
Agora, o que ela quer é comprar uma moto para agilizar suas entregas e continuar colocando em prática o que sempre desejou: fazer com que mais pessoas possam experimentar o seu tempero de vó.
Point do Acarajé
Av. Hebe Camargo, 23 – Paraisópolis, São Paulo
Se você nasceu da ponte pra cá, certamente leu essa frase com a voz do Mano Brown e ‘mil fita’ na mente. E, realmente, poderia até ser um Mano Brown ali, escrevendo sua história, no meio da selva de concreto e aço, marcada por tanta desigualdade. Mas não. Quem manda, desmanda e escreve uma nova história com sabores e delícias diferentes das impostas por aí é a queridíssima Teomila, dona do Point do Acarajé. Mulher e negra é ela quem semeia a única coisa que resiste no meio de todo esse caos: o amor.
O Point fica na Av. Hebe Camargo, na altura do número 6, que fica exatamente de frente para o cruzamento da Rua Herbert Spencer. Cruzamento esse que, curiosamente, representa muito bem a pluralidade dos clientes, moradores e transeuntes da quebrada de Paraisópolis. Da parte direita do cruzamento, só partem carros caros, pilotados por motoristas apressados; e da parte esquerda, carros econômicos andando lentamente, com o som estralando.
Antes vendedora de acarajé na Bahia, Teomila chegou em SP em 2012, mas somente em 2014 conseguiu abrir o Point do Acarajé. No começo, ela ficava em uma esquina ali perto e, depois de investir em suas receitas e até dar miniacarajés de graça, ela expandiu a clientela e a barraca para o novo point.
A expansão tem um motivo evidente: a singularidade da receita do prato principal de Teomila: seu exaltado Acarajé. A cozinheira segue atentamente as fórmulas ancestrais de sua tia, que diz que o prato tem que ser feita de puro feijão fradinho, com a massa preparada na cebola e frita no azeite. Esses passos deixam a massa única; crocante na medida, temperada minuciosamente, e em harmonia substancial com o recheio – que se mistura no céu da boca, e dá a exata sensação de, ao invés de só estar mordendo um pedaço de acarajé, estar vivendo o lado mais belo de toda a Bahia.
De cara, aquela ideia do amor, meio vazia, pode até parecer um papo bem boroca. Mas a real é que o Point do Acarajé, antes de ser o pico do melhor acarajé de São Paulo, é uma referencia cultural para a vida. Isso porque, segundo a própria Teomila, o diferencial desse acarajé, para qualquer outro, é o amor depositado no trabalho que ela faz. E quando o amor é combustível para algo, meus amigos, aí é que ninguém pode brecar.