Comida chinesa não transmite coronavírus
A epidemia de coronavírus ainda não chegou ao Brasil, mas o pânico e a boataria já foram suficientes para abrir o portal do inferno. Como fica evidente nas redes sociais –em especial, no Twitter–, liberou geral para declarações racistas contra os chineses.
Como a ignorância é vasta (não apenas no Brasil, talkey?), outros asiáticos entraram no samba. Ninguém sabe a diferença entre um chinês, um japonês e um coreano, muito menos distinguir brasileiros descendentes desses povos. Ninguém se interessa.
O próprio presidente da República referiu-se à jornalista Thaís Oyama como “essa japonesa, que não sei o que faz no Brasil”. Thaís, neta de japoneses, é tão brasileira quanto Bolsonaro.
Cresci na Aclimação nos anos 1970. O bairro, colado à Liberdade, tinha muitos orientais. O preconceito, inclusive na minha casa, era escancarado. Japoneses não sabem dirigir porque não têm visão lateral (por causa dos olhos puxados). Coreanos são bitolados, quase robôs. Chineses são imundos.
Admitia-se, contudo, a obstinação e a disposição para o trabalho dos orientais. Era impossível negar o óbvio: eles ralavam e tiravam notas melhores do que nós, euro-paulistanos. Isso os colocava numa posição acima dos negros e nordestinos, a mazela da metrópole que já fora branca (nos delírios dessas pessoas).
Eu tinha vários amigos dessas comunidades, que aceitavam com certa resignação a zoeira. Aquilo era o Velho Oeste, only the strong survive.
Com a comida, o preconceito despontava ainda mais cru. Minha mãe trabalhou por vários anos na Liberdade e nunca entrou em um restaurante japonês. Tinha nojo, assim como quase todas as senhoras de seu convívio. Eu só vim a conhecer as culinárias asiáticas depois de sair de casa.
O coronavírus, turbinado pelo retrocesso civilizatório dos tempos recentes, autorizou de novo o ataque racista à alimentação dos chineses. Isso porque os morcegos silvestres da região de Wuhan –onde há restaurantes que servem sopa de morcego– podem ter sido o vetor da transmissão do vírus de animais para os humanos.
(Sei que eu fiz um texto falando dessa sopa como o maior horror culinário possível. Continha ironia, abiguinhos. Eu deveria ter sido mais claro.)
Em Portugal, onde a xenofobia tem crescido tanto quanto a imigração, o boicote à comida chinesa já emergiu do lodo. Aqui, é só uma questão de tempo. A festa do Ano Novo Chinês, na Liberdade, foi esvaziada pelos próprios organizadores no último fim-de-semana. Gato escaldado tem medo de água fria.
Enfim, ninguém culpou o hábito de comer carne bovina pela doença da vaca louca, que se espalhou a partir da Inglaterra na virada do século –e se manifestou em humanos como a doença de Creutzfeldt-Jakob, uma encefalopatia letal.
Porém, quando a gripe aviária se disseminou desde a China, culpou-se a higiene percária dos asiáticos no trato dos galináceos.
Ingleses são ingleses. Chineses são chineses. Vacas são vacas. Frangos são frangos. Morcegos são morcegos. Racistas são racistas.
E a comida chinesa é variada, sofisticada, complexa, rica, deliciosa. Morcegos, cachorros e escorpiões são apenas os ganchos para o sensacionalismo –assim como a rã e o escargot da França. Comida chinesa não transmite coronavírus. Não caia na estupidez de ouvir os imbecis de plantão.
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