A última feijoada
Alguns sábados atrás, acordei e recebi a notícia de que o governador decretara quarentena para a terça-feira seguinte. Já recluso havia alguns dias, resolvi tocar o f*-se. Desci para comer uma feijoada no boteco que fica exatamente embaixo do meu prédio. Talvez fosse a última feijoada da minha vida.
Era cedo, e a única mesa ocupada tinha quatro belgas, suíços, sei lá, gente cor-de-rosa que falava francês com um sotaque engraçado. Ou talvez seja eu o burro incapaz de reconhecer o sotaque de um francês.
O bar fica numa esquina e é aberto para os dois lados que dão para a rua. Bem ventilado. Sentei-me numa mesa ao ar livre, sobre um tablado com grama sintética que o dono instalou para compensar o suave declive do terreno. Bem longe dos gringos.
Era a primeira vez que eu punha a cara para fora em vários dias.
“Cardápio, senhor?” Respondi que não, iria comer a feijoada, mas queria beber cerveja antes de fazer o pedido. “Deixa que eu mesmo abro a garrafa, tá?”. Tenho um chaveiro-abridor que já me socorreu em muitos apuros.
A moça veio com a cerveja. Segurava a garrafa pelo topo do gargalo, com a mão em contato com a tampinha. Coroooooonga! “Obrigado”, disse para a gentil funcionária (eles fazem assim porque, se pegarem uma garrafa muito fria pelo corpo, a cerveja pode congelar). Passei álcool em gel na garrafa, abri, servi, bebi.
Chegou uma família. Três pessoas e três gerações, presumo. A matriarca idosa, o filho de meia-idade e o neto jovem. Com o bar inteiro vazio, eles resolveram ocupar a mesa exatamente atrás de mim. Os estrangeiros pagaram e foram embora.
A senhorinha, grupo de risco, exalava um perfume doce e intenso. O vento soprava na minha direção. Precisei mudar de mesa.
Fui para o salão, numa mesa junto ao canteiro que dá para a rua. Na TV, uma longa e insuportável coletiva do governador. A mesa familiar recebeu duas feijoadas individuais para dividir em três. Uma cumbuquinha pequena, triste de feijão. Duas, a bem da verdade.
Terminei de beber e fui encerrar a conta. Não queria nem pensar que aquela poderia ser, por alguma zica do destino, a última feijoada da minha vida.
Prefiro ficar com a lembrança da feijoada que compartilhei, alguns dias, antes, com amigos. Espero que não tenha sido a última. Ops, penúltima: na loucura da quarentena, cometi a insanidade de comer uma feijoada pronta dessas de supermercado. E estava boa.
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