Jantar solitário é sequela permanente da Covid-19

 

Kevin, meu amigo gringo, fica pistola quando um restaurante serve apenas porções para duas pessoas. Ele escreve para o guia de viagem “Lonely Planet”. Uma de suas atribuições é avaliar restaurantes, geralmente sozinho à mesa.

Quando está no Brasil, Kevin passa raiva em metade das refeições a trabalho: muitos restaurantes, em especial nas localidades turísticas, se recusam a fazer pratos individuais. Ou então cobram 70%, 80% do valor do prato na meia-porção.

Kevin é um chato que reclama de tudo, mas aqui ele tem razão. Uma dupla de clientes não quer, necessariamente, dividir a mesma comida. E como lidar com grupos ímpares? “Putz, estamos em cinco… vamos pegar alguém na rua para fechar meia dúzia.”

As porções para dividir dizem muito sobre a cultura alimentar brasileira. Para nós, comer fora é um evento social. Jantar a sós é necessidade fisiológica. Em casa, qualquer gororoba resolve. No restaurante, é um constrangimento: que seja o mais breve possível.

O distanciamento social forçado pela pandemia de Covi-19 arrisca mudar para sempre essa cultura.

Milhões de brasileiros estão trancados em casa, em convivência compulsória consigo mesmos. Eu sou um desses.

Quer saber? Depois de um mês de quarentena, você se acostuma com a solidão. Daí para a absoluta misantropia, é um pulinho. O contato social, antes um bálsamo, se tornou ameaça.

Ir ao supermercado é brincar de Pac Man. No labirinto das gôndolas, as compras são as bolinhas que dão pontos; os outros clientes são os fantasmas que podem te matar. Se você é jovem demais para saber o que é isso, vá pesquisar –hoje estou mais antissocial do que de costume.

Minha última aventura no Pão de Açúcar foi assustadora. Sem máscaras, um casal andava lado a lado, bloqueando a passagem e tagarelando como se houvesse amanhã. Gente, fiquemos calados em público, pelamor. Boca fechada não dispara perdigoto.

Na geladeira das carnes, uma mulher de meia-idade se aproximou perigosamente enquanto eu estava indeciso entre o patinho e o coxão mole. Recuei. Ela se aproximou mais. Recuei outra vez. Ela atacou de novo, e eu fui expulso para a área da peixaria.

Cheguei em casa ofegante e aflito pelos rituais de descoronação. Lavado, pude brincar com meu novo melhor amigo, um aspirador robô que eu batizei de Mister Roboto –em alusão a uma música antiga e ruim.

Roboto se parece com um límulo, artrópode paleozoico que ainda chafurda nas areias do Golfo do México. Pode não ser bonito, mas dá menos trabalho do que um gato.

Enfim, tenho a impressão de que o longo isolamento vai deixar, como sequela, uma multidão de pessoas solitárias por opção. Gente satisfeita com a vida social virtual. A mesa para um chegou para ficar.

Agora preciso me despedir, pois preciso fazer meu jantar. Quanto a Roboto, ele come poeira. É um companheiro fiel e, acima de tudo, econômico.

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