Vamos abrir os bares, deixar o gado entrar, trancar e jogar fora a chave
O amigo gringo nos levou a uma típica espelunca gringa, o boteco da esquina mais próxima da casa dele, em São Francisco. Chamava-se The Summer Place, “O Lugar Veranil”. Melhor, chama-se: ele ainda está lá, na Bush com a Mason, bairro de Nob Hill.
O ambiente do Summer Place não poderia ser mais decadente. Sem janelas, escuro, com mobília barata, uma jukebox no fundo do salão e o balcão do barman –tiozão com cara de poucos amigos que enxugava copos, mas nunca os lavava.
Para beber, cerveja quase fria, doses e coquetéis pouco elaborados. Para comer, amendoim, batata chips e pretzels. Tudo direto do saquinho.
Ou seja, adorável.
O que parecia destoar no Summer Place era a fumaça. Os clientes, poucos e borocoxôs, tragavam Marlboros como se estivessem no banheiro de casa.
A polícia de São Francisco precisava saber daquilo!
A Califórnia, berço do politicamente correto, foi pioneira no banimento do cigarro em espaços públicos. Na noite anterior, o amigo gringo nos levara a um bar todo trendy, em que os fumantes tinham um aquário para si –um cercado de paredes de vidro, com porta independente para a rua.
Como aqueles Bukowskis de meia-pataca podiam baforar livremente no Summer Place? O amigo gringo, para meu espanto, não demonstrava espanto algum com a situação.
Ele explicou: podia-se fumar no Summer Place porque assim o dono decidira. E os funcionários, cáspite? Não os havia. O velhote trabalhava sem ajuda, donde o cardápio conciso e o banheiro calamitoso.
O cigarro era liberado no Summer Place porque todos os fumantes, ativos e passivos, inalavam alcatrão por iniciativa própria. Assim ditava a lei local.
O episódio ilustra a noção que os norte-americanos, na sua melhor versão, têm de liberdade: você pode fazer o que der na veneta, desde que não prejudique terceiros.
Por déficit intelectual ou desfaçatez –ou ambos–, os bolsotrumpistas distorcem esse conceito monstruosamente.
Julgam-se no direito de ir e vir em meio à pandemia, de comer hot-dog na rua, de frequentar festas sob a guarida de uma residência inviolável, de forçar a abertura de restaurantes e bares.
Se a peste circulasse só entre eles, seria darwinianamente esplêndido.
Mas a arrogada liberdade dessa gangue, é cansativo e necessário repetir, põe a população inteira em risco. Até eu, um zero à esquerda na matemática, consigo entender a evolução exponencial do contágio da Covid-19.
A abertura precoce de um bar atinge, de cara, os funcionários. É pérfido dizer que os trabalhadores se submetem voluntariamente ao risco –e típico do capitalismo tosco brasileiro.
Valentões e valentinas, lembrem-se: o contágio tem mão dupla. Bebam em casa, se não quiserem que um garçom doente tussa no seu drinque.
Ou pensemos num inovador modelo de negócio, inspirado na Califórnia livre. Um boteco sem funcionários, em que dono e clientes ficarão trancados sem a chave até o vírus sumir. Com nome gringo, porque é chique. The Corona Place.
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