Editor de gastronomia mandava a subordinada negra lustrar tacos de golfe
Na esteira da revolta global contra o racismo, está fazendo barulho a renúncia, na semana passada, do chefão de uma das maiores revistas de comida do mundo: a “Bon Appetit”. Barulho, bem, compatível com o prestígio atual desse tipo de imprensa –o bastante, porém, para repercutir em veículos do porte do “New York Times” e do “Washington Post”.
Adam Rapoport caiu depois que uma foto antiga de seu Instagram viralizou no pior sentido possível. Na imagem, ele e a mulher estavam celebrando o Halloween fantasiados de porto-riquenhos. Adam usava uniforme de beisebol, uma corrente gigantesca e bigode finíssimo, numa caricatura pouco lisonjeira da população hispânica dos Estados Unidos.
A derrocada do editor fez emergir outros casos de assédio contra pessoas não-brancas na redação da revista. A assistente direta de Adam, preta e graduada na prestigiadíssima universidade Stanford, era usada pelo chefe para preparar-lhe café e limpar seus tacos de golfe.
Uma colaboradora de ascendência bengali acusou o editor de pagar apenas aos subordinados brancos por aparições em vídeo –a “Bon Appetit” engloba também a plataforma digital “Epicurious”–, enquanto os restantes eram “convidados” a participar das gravações sem remuneração extra.
No que diz respeito ao conteúdo da revista, a equipe acusa Adam de desdenhar de matérias e receitas de comidas dos países que os norte-americanos ainda conhecem por “terceiro mundo” –Brasil está nesse balaio, apesar de todo o afago testicular de nosso Governo Federal no presidente Trump.
O escândalo na “Bon Appetit” jogou uma luz incômoda na cultura corporativa da imprensa, em especial do grupo Condé Nast (cujos títulos são representados no Brasil pela Editora Globo), que edita a publicação.
“Por décadas, tanto no nível de cultura corporativa quanto na visão global de marca, para as revistas de ‘lifestyle’ da companhia havia pessoas ‘certas’ e ‘erradas’, uma distinção determinada no berço.”, diz o artigo de Ginia Bellafante para o “NYT”. “Havia os ricos, e havia os dispensáveis; os lindos e os condenados –um paradigma que agora se mostra perigosamente indefensável, e que a companhia tem lutado para mudar.”
Não é uma exclusividade das redações da Condé Nast nos EUA, mas uma chaga de toda a imprensa, em particular dos setores voltados ao luxo e ao supérfluo, como moda, gastronomia e turismo.
Trabalhei entre 2002 e 2012 naquele que era o maior grupo editorial do Brasil –a editora Abril, desmantelada num processo de recuperação judicial que sustou os pagamentos devidos a centenas de colaboradores. No auge do império abriliano, no início dos anos 2000, ainda era comum ouvir de gente do topo da corporação que “foto de negro não vende revista”. O dogma era respeitado nas redações, como se pode verificar facilmente no arquivo de capas.
A norma racista foi relaxada mui lentamente, e política inclusiva cresceu na mesma medida em que a indústria brasileira de revistas mergulhou em queda livre para a insignificância.
Nos EUA, essa indústria ainda respira. Episódios como o da “Bon Appetit” apontam um futuro pouco promissor para ela também.
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