Se está difícil para os bares, imagine para as garotas de programa
Quem me acompanha no blog percebe que eu tenho uma posição enfática em relação à reabertura dos bares: acho que ela não deveria ter ocorrido.
Isso me custou a antipatia de muitos donos de boteco. Em resumo, dizem que eu não sei nada da realidade do setor e que sou insensível ao drama das pessoas que dele dependem para sobreviver.
Em resposta à primeira acusação, escrevo sobre bares e restaurantes há mais de 20 anos. Na condição de jornalista profissional, fiz visitas técnicas a dezenas de vinícolas, cervejarias e destilarias no Brasil, nas Américas e na Europa. Tive uma coluna sobre bebidas por 5 anos numa revista de circulação nacional. Fui jurado de concursos internacionais de coquetelaria. Sou sommelier de cerveja diplomado. Prestei serviços de consultoria e de relações públicas à indústria cervejeira e a uma grande rede de bares.
Posso não entender muito, mas alguma coisa eu entendo sobre o setor de bebidas.
Próximo assunto.
O fato de eu escrever sobre comida e bebida não me torna automaticamente um porta-voz dos interesses do setor.
Isso deveria ser óbvio, mas a promiscuidade do jornalismo gastronômico faz com que alguns empresários enxerguem os cronistas como uma engrenagem do meio. Não somos. Precisamos ter postura crítica e contrariar os interesses das nossas fontes quando for necessário. Como é necessário agora.
Não sou refratário ao drama daqueles que trabalham com bares e restaurantes. Como agente externo, porém, tenho o dever de colocar a situação em perspectiva e hierarquizar a importância de cada coisa. Crises brabas como esta exigem decisões duras, que podem parecer cruéis.
A saúde geral da população é mais importante do que a sobrevivência econômica dos bares. Reconhecê-lo pode ser duro para mim, botequeiro inveterado desde tenra idade. Mas não é difícil, dado que um tanto óbvio.
Bares abertos são um potencializador de contágio da peste que se espalha pelo ar e pela saliva. Não sou eu quem diz, são os médicos epidemiologistas.
Uma tabela divulgada ontem (19), no “Fantástico”, graduava de 1 a 9 o risco sanitário de algumas atividades cotidianas. Abrir a correspondência ficou no nível 1, o mais baixo de todos. Pegar a pizza trazida por um motoqueiro, nível 2. Comer num restaurante ao ar livre, nível 4. Num restaurante fechado, nível 7. Churrasco com os amigos, nível 5. Restaurante self-service, nível 8.
O levantamento, feito pela Associação Médica do Texas, põe frequentar bares no nível máximo de risco, 9, ao lado de grandes shows, estádios lotados e cerimônias religiosas que reúnem multidões.
Não há como defender os bares abertos a esta altura do campeonato.
Muita gente vai ficar sem renda, o que é grave e triste. Essas pessoas vão precisar se adequar a outras atividades, como fizeram os baleeiros, os chapeleiros, os datilógrafos, os mercadores de marfim, os fabricantes de espartilhos, os donos de videolocadoras, os donos das casas de ópio, os trabalhadores envolvidos na fabricação da talidomida. Como estão fazendo os jornalistas, minha categoria profissional.
As reviravoltas da história não raro dizimam ou aniquilam ofícios, deixando na mão milhares, milhões de trabalhadores.
O setor de bares foi fortemente atingido pelas restrições sanitárias impostas pela pandemia da Covid-19. É uma categoria com que nos identificamos facilmente, mas não é a única em maus lençóis.
Bares e restaurantes são apenas a ponta mais vistosa de todo um aparelho econômico voltado para conversas, abraços, beijos e algo mais.
Da fábrica de gel íntimo ao pastor que vende lotes no céu, centenas de categorias profissionais e negócios subsistem às custas da aglomeração. Nem que seja uma aglomeração de dois.
Pense nos dentistas, massagistas, tapioqueiras, camelôs, manicures, pedicures, salões de festa, motoristas de van, barbeiros raiz e gourmet, fabricantes de cartas de baralho, candidatos, qualquer um no ramo do narguilé.
Pense nos pobres em geral, que aglomeram fora de casa quando trabalham e aglomeram dentro de casa quando não têm trabalho.
Pense nas crianças que dependem da educação presencial para ter uma boa formação.
Se nem as crianças te comovem, pense nas putas, nas raparigas, nas garotas de programa.
Assim como 90% dos cozinheiros são ruins demais para aparecer nos guias gastronômicos, só 10% dos trabalhadores do sexo são bonitos o bastante para trabalhar a distância, com segurança, exibindo o corpo na internet.
“Ah, mas são putos e putas.” Tsc, tsc, que jeito horrível de pensar.
O serviço dos bares não é mais essencial do que os das putas. Ambos são válvulas de escape para as tensões quase insuportáveis da vida em sociedade –que está mais doente do que nunca, e não me refiro à Covid-19.
Bares vão precisar se adequar, putas vão precisar se adequar, todos nós vamos. Devemos cobrar providências e responsabilidades dos agentes estatais para minimizar o impacto da crise. Mas não podemos seguir a vida como se tudo estivesse normal e pudéssemos brindar com uma cerveja no boteco.
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P.S.: De acordo com a coluna do Ancelmo Góis, no “Globo”, o Rio perdeu definitivamente um de seus bares mais importantes. O Hipódromo concentrava a muvuca de todas as noites na praça Santos Dumont, conhecida pelos botequeiros como Baixo Gávea. Tecnicamente não era um bom bar –chope aguado, comida sem graça, serviço caótico–, mas isso só importa para paulistas como eu. Na mitologia carioca, o Baixo é onde as estrelas da música e da TV bebiam de chinelo ao lado dos quase-plebeus da zona sul. É uma perda simbolicamente devastadora. Mais uma baixa destes tempos sombrios.