Meu vinho de 5 litros segue à espera de um motivo para ser aberto

Ela se chamaria Matusalém, se tivesse 6 litros. Se tivesse 4,5 litros, seu nome seria Roboão.

Mas minha garrafa de 5 litros de vinho não se encaixa na taxonomia clássica, com nomes bíblicos para batizar bebidas em recipientes superdimensionados –e que respeita os múltiplos de 750 ml, a garrafa normal.

Não interessa. Tenho uma garrafa de 5 litros de vinho. E sua história é provavelmente melhor do que o líquido que ela contém.

Sem ofensas ao vinho, que é bom. Cinco litros de Chaminé, o rótulo de entrada da vinícola alentejana Cortes de Cima, muito bem reputada em Portugal.

O garrafão estava numa prateleira alta, perto do teto do boteco Velho Adonis, no Rio. Eu entrevistava o dono, João Paulo Campos, quando meus olhos encontraram o vinhão.

“Ali tem vinho mesmo ou é só decoração?”, perguntei.

“Tem vinho”, ele respondeu. “E é seu.”

Depois de uma tentativa pouco empenhada de um deixa-disso, João pediu para um funcionário baixar a garrafa e me entregar.

Aí começa a segunda parte da saga.

Levei o vinho para o apartamento onde eu morava, em Ipanema. Eu estava no Rio para tentar me recompor de uma separação recente –eu ia escrever “difícil”, mas aí lembrei que o Manual de Redação manda evitar redundâncias.

No Rio, não conhecia gente o bastante para uma reunião que justificasse a abertura de um vinho tão grande.

Precisei me mudar de volta para São Paulo. Eu vim de avião. Meses depois, precisei pegar a via Dutra para trazer a garrafa de carro. Ela foi alojada no alto de um armário do meu recém-alugado apartamento de solteiro. Deitada, para não estragar. Tudo nos conformes.

Na época, minha maior dúvida era se eu seria capaz de abrir a tal garrafa com um saca-rolhas ordinário.

Em janeiro deste ano, perdi uma oportunidade de dirimir essa questão. Minha filha engravidou. Fizemos uma festa para seus amigos no terraço do meu prédio. O vinho subiu. Ficou intacto. Todos, inclusive eu, preferiram beber cerveja. O vinho desceu.

Então chegou a pandemia. Meu neto nasceu em Brasília. Ainda não o conheço. Precisei sair do apartamento, por falta de condições de pagar o aluguel.

O vinho de 5 litros viajou de carreto para a casa da minha mãe. Está deitado num velho guarda-roupas cheio de memórias, algumas minhas, em que eu prefiro não remexer.

Assim como eu, o vinho de 5 litros está à espera de um bom motivo para uma aglomeração boa. Que ele chegue antes de ambos virarmos vinagre.

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