A pipoca fit e a imbecilização do ato de comer
Os chamados press releases –comunicados à imprensa para divulgar produtos, pessoas, serviços e/ou eventos– raramente decepcionam.
Nesta semana, chegou o release de alguém que se apresenta como “nutricionista e influenciadora digital, referência em boa forma e saúde”. A jovem em questão, cujos gomos abdominais ilustram o informe, teria formulado uma dieta boazona para a quarentena.
Generosa, ela oferece as receitas de três refeições (“refeições” é a palavra empregada) fáceis, deliciosas e práticas de fazer.
Oba. Adoro quando a praticidade e a facilidade encontram a deliciosidade.
Tome as receitas: abacate e ovo sobre bolacha de arroz, mingau de proteína de leite de vaca e uma certa “pipoca fit”. A última me deixou intrigado.
A lista de ingredientes da “pipoca fit” se limita a… milho de pipoca. O modo de fazer envolve cobrir os grãos com água e sapecá-los com alguns minutos de micro-ondas. Sal? Deixa disso. Obra-prima do minimalismo culinário.
O mundo está no avesso. Aí vem uma fulana vender pipoca cozida, sem óleo nem sal, como refeição deliciosa? Vá pentear macacos.
Conversei recentemente com o professor Carlos Monteiro, cientista da USP que coordenou o “Guia Alimentar para a População Brasileira”, cartilha de diretrizes nutricionais publicada pelo Ministério da Saúde em 2014.
Carlos, a quem emprestei este espaço duas semanas atrás (ele escreveu o artigo “Ovo faz mal?” para a campanha Cientista Trabalhando) é um crítico feroz dos alimentos ultraprocessados. Seu trabalho por uma alimentação de qualidade mira também um inimigo mais matreiro: o tal do nutricionismo.
Nutricionismo é a alcunha dada à pseudociência da nutrição. Às dietas milagrosas e ao mito de que é possível “quebrar” os alimentos em seus componentes químicos, para ingerir o que faz bem e descartar o resto. Entram aí também os suplementos e a “alimentação funcional”.
A visão utilitária da comida quer transformá-la em remédio, combustível ou material de construção. Excluem-se os aspectos socioculturais da refeição. O prazer de comer é mandado para o cantinho do castigo –de onde sairá furioso no próximo surto de atacar chocolates na madrugada.
Rob Rhinehart, um geninho norte-americano da computação, inventou em 2013 um treco que batizou de Soylent. Trata-se de um pó insípido para ser diluído em água e que, em tese, contém todos os nutrientes necessários para o corpo funcionar joinha.
A fórmula busca poupar tempo para empregá-lo em atividades realmente produtivas e edificantes. Coisa de quem não gosta de comer.
Esse é o cúmulo do nutricionismo, caricato e folclórico. Menos radicais são o marombeiro que se entope da albumina para ganhar massa muscular, a riponga que toma cúrcuma para evitar câncer e o ignorante que devora temakis de salmão de criadouro, na esperança de se proteger com ômega-3.
Reduzir a alimentação a uma planilha de Excel é, além de simplório, imbecil. Tanto faz se as intenções são as melhores.
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