Se não têm arroz, que comam risoto de açafrão
Preciso confessar um negócio: não faço a mínima ideia de quanto paguei pelo saco de arroz que comprei no começo de agosto (e que ainda não acabou).
Comprei sem olhar o preço. Não deixaria de comprar arroz por causa do preço. Não no longínquo agosto, quando o preço do arroz ainda não havia virado meme.
Por falar em meme, interessante a guerra de informação que está em curso.
A esquerda transbordante de ironia inventou mil piadinhas no Twitter. Criou meme de espeto de grãos de arroz –como se fosse picanha– e até um que compara o cereal à cocaína, com a foto de meia dúzia de arrozes num saquinho plástico.
A tropa defensora do governo ataca com diversionismo e apelo ao patriotismo.
Da patriotada não tenho paciência para falar, deixe-a nadar em bile verde-amarela. Quanto ao diversionismo, ele joga a culpa nos críticos e minimiza a carestia dos alimentos da cesta básica.
Os mimizentos que comam macarrão, comam lasanha, pirão, angu. Se o agulhinha longo fino tipo 1 está caro, que comprem cateto, comprem basmati, comprem arbóreo ou carnaroli. Que troquem o arroz branco por paella valenciana, troquem-no por risoto de açafrão.
Para rebater as críticas de uma certa elite progressista, o exército virtual bolsonarista faz a Maria Antonieta. Faz pouco da gravidade do problema.
Circula o vídeo de um agricultor, de chapéu e sotaque interiorano sob o céu aberto, ironizando quem reclama da inflação dos alimentos. Ataca a imprensa, em especial, que insiste em dar destaque ao fato.
Ele diz que ninguém se queixa do preço do cinema, da pipoca do cinema, do celular. Ele diz que “caboco” compra tênis de mil reais e põe a culpa no saco de arroz. Ele diz que o produtor rural comanda com maestria uma indústria ao ar livre, mas que –então ele aponta para o alto– o negócio depende do imponderável divino.
O sujeito dá a entender que a flutuação do preço se deve ao clima, o que é falso agora. A alta atual foi causada por aquecimento na demanda –e retenção de estoques pelo produtor, para obter negócios mais vantajosos.
O “agricultuber” foi endossado por tuítes do subministro, ops, secretário Mario Frias e da deputada governista Bia Kicis (PSL-DF), cães de guarda do presidente. Frias legenda o vídeo assim: “Acorda, meu povo, a comida que chega na [sic] sua mesa não aparece como mágica”.
Tivessem um pouco de sensibilidade e sensatez, o homem do chapéu e seus fãs admitiriam que a imprensa não reclama em causa própria.
O jornalismo expõe os fatos. O fato é: a inflação dos alimentos teve um crescimento anormal. E a possível consequência do fato é: os mais pobres podem passar fome.
Quem vai ficar sem comer não sou eu. Nem os colegas do jornal. Nem você, que tem condição de assinar o jornal e até pagar a pipoca do cinema. Nós todos, até outro dia, comprávamos arroz sem olhar o preço. Enorme vacilo, por sinal.
Numa coisa Mario Frias está certo: o povo precisa acordar. E acorda zangado quem acorda com fome.
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