Na padaria Ipanema, café quentinho e um cadáver morno no chão

No chão da padaria, tinha um homem morto.

No chão da padaria, tinha um homem morto, um sem-teto que dormia na mesma rua da padaria.

No chão da padaria, tinha um homem morto, um sem-teto que dormia na mesma rua da padaria. Ele era tuberculoso. Ou tinha tuberculose. Ou era portador de tuberculose –francamente, não sei qual é o termo socialmente adequado para essa doença pré-moderna.

No chão da padaria, tinha um homem morto, um sem-teto que dormia na mesma rua da padaria. Ele tinha tuberculose e chegara pouco antes, tossindo sangue.

No chão da padaria, tinha um homem morto, um sem-teto que dormia na mesma rua da padaria. Ele tinha tuberculose e chegara pouco antes, tossindo sangue. Queria ajuda para chamar uma ambulância.

No chão da padaria, tinha um homem morto, um sem-teto que dormia na mesma rua da padaria. Ele tinha tuberculose e chegara pouco antes, tossindo sangue. Queria ajuda para chamar uma ambulância, mas morreu –a padaria cobriu o cadáver com um saco preto e seguiu funcionando, vendendo açaí e servindo mate gelado para a clientela.

Cada detalhe faz aumentar em um grau o horror da história do homem que morreu dentro da Confeitaria e Lanchonete Ipanema. Com tal nome, ela poderia ficar em Bauru ou Ponta Porã, mas ficava mesmo em Ipanema, zona sul do Rio. Na rua Visconde de Pirajá, esquina da praça Nossa Senhora da Paz, na boca da entrada do metrô, muvuca total carioca.

Eu morei na Visconde de Pirajá por seis meses, no ano passado. A duas quadras e meia da padaria em que morreu Carlos Eduardo Pires de Magalhães, 40 anos, na manhã da última sexta-feira (27/11).

O tamanho da população em situação de rua impressiona até quem veio de São Paulo, que não é nenhuma Oslo.

O primeiro impacto é olfativo. A calçada da Visconde –e de todas as áreas comerciais do Rio de Janeiro– cheira a creolina. Isso porque, todas as manhãs, as pessoas encarregadas de abrir as lojas lavam o chão com desinfetante, para remover o combinado de odores das pessoas que dormem na rua.

Depois de algumas semanas, o nariz se acostuma.

A Visconde de Pirajá é rua do comércio em Ipanema. Tem incontáveis lojas, abertas para a rua ou em galerias, um zilhão de cafés e lanchonetes, multidões de pedestres, congestionamento de ônibus na faixa da direita.

Muito importante, há marquises em quase toda a sua extensão, com abrigo do sol e da chuva. Boa iluminação e segurança razoável. Para quem precisa dormir e não tem uma casa, é o menos degradante à disposição no Rio.

A Visconde fica encostada nos morros do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, que juntos formam uma das maiores favelas da zona sul. Muitos dos pedintes que ocupam a calçada durante o dia têm teto: são miseráveis que descem para o asfalto em busca de esmola e, quem sabe, uma quentinha de comida.

O Rio lida a seu modo com toda essa gente, na antiga tradição carioca de acomodação de tensões.

Bem em frente ao meu prédio morava um homem que vendia livros e discos usados sobre um pano estirado na pedra portuguesa. Cordial a maior parte do tempo, quando anoitecia ele pegava a carroça e o cachorro e saía gritando com todo mundo na rua.

Uma noite, desci para ver um jogo do Flamengo no balcão do bar Popeye. Senti um cheiro peculiar e olhei para o lado: cotovelo encostado no meu, lá estavam o homem dos livros e seu chopinho gelado. Cachorro e carroça esperavam no lado de fora. Ele bebeu, não pagou, saiu e voltou a xingar as pessoas na rua Visconde de Pirajá.

Ninguém deu a menor bola, nem o pessoal que trabalha no bar.

O detalhe que mais impressiona na história do homem morto na padaria da Visconde de Pirajá é uma foto que circula na internet: um pouco pra lá do defunto no saco preto, tem gente nas mesas, comendo e tomando café como se fosse normal.

Não é normal. É o horror.

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