Tudo sempre pode piorar na noite de Natal
Sempre pode piorar.
No Natal, mais do que nunca.
Não reclame do espumante moscatel. Espere, que daqui a pouco o primão vai abrir um vinho Bolsonaro e brindar ao Capitão Genocídio. Ele ainda vai se gabar de ter pagado R$ 200 numa garrafa que, com outro rótulo, custa R$ 45. Coisas de fã.
Conforme-se com a farofa de ameixa da tia. Enquanto a família mastiga, ninguém fala absurdos sobre o vírus chinês, a vachina e o ditadória. E ameixa é bom para desopilar o intestino.
Contente-se com as meias que a avó deu para você pelo oitavo Natal consecutivo. Poderia ser a biografia do Ustra ou, sei lá, uma gravura do Romero Britto.
Agradeça que a irmã trouxe o mala-sem-alça do namorado novo. Se ela não estivesse ocupada em chamá-lo de apelidos fofos, estaria louvando a revolta dos comerciantes de Búzios contra as medidas de isolamento.
O lombo seco, o tender salgado, o salpicão meio azedo e o peru duro –pois assado demais– não são tão maus assim. Pense que o pai cogitou trocar a ceia por um monte de hambúrgueres do Madero, para dar uma força ao empresariado patriota.
Aguente estoicamente o disco da Simone. Não fosse ele, o tio era capaz de botar na SmartTV de 58 polegadas o especial natalino do Brasil Paralelo, com a participação de Paulo “Selva” Kogos, Caio Coppola e Luís Ernesto Lacombe, entre outros gênios alt-right.
Não se incomode com o calor. Graças a ele, você pode passar a maior parte do tempo na janela, na varanda, na calçada, sem falar com quem você não quer falar. Mas é capaz de chover. É capaz até de cair granizo.
Tudo pode piorar numa noite de Natal. Já aconteceu outras vezes. Briga de família, intoxicação alimentar, brinquedo pisoteado por bêbado, visita que nunca vai embora. Nada disso é inédito.
Inédito é tentar achar motivos para celebrar qualquer coisa num ano como 2020. Mas celebre porque, acredite, não chegamos ao fundo do poço. O poço não tem fundo, aliás, e tudo pode piorar.
Pode piorar e vai piorar. Tem uma doença maldita entre nós. Tem um presidente que trabalha pela morte da população do país. Tem um exército de dementes que dão o maior apoio a essa política de extermínio sistemático. Alguns desses sacripantas calham de ser nossos parentes.
No próximo Natal, vai ser pior ainda. Muita gente vai morrer ainda. Os parentes bolsominions, os outros parentes, talvez eu, talvez você, talvez nossos pais, talvez um de nossos filhos. Fazer o que, né? Todo mundo morre um dia.
Se as coisas melhorassem e o mundo se tornasse um pouco justo, Bolsonaro comeria na ceia o arroz carunchado e a carne sebosa da marmita de alguma penitenciária. Não vai acontecer, e pode piorar. Pode ser que ele sirva na Alvorada a ceia do Natal de 2023.
Mas pode ser que não. Ainda podemos impedir. Se existe algum motivo real de celebração neste Natal, ele é o fato de que sobrevivemos, ainda que alquebrados, à catástrofe de 2020. Vai ser difícil para cacete, mas lutemos para sobreviver também a 2021. Boas festas.
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