Sem nordestinos, São Paulo não seria a capital da pizza e do sushi

Quando ainda saía de casa, minha mãe adorava um pequeno restaurante numa rua residencial do Cambuci, bairro onde mora até hoje. A dona do lugar era uma senhora italiana –napolitana, se não me engano–, e o serviço de mesa era feito por seus dois filhos. Ambos haviam nascido no Brasil e, naquela época, já passavam dos 50 anos de idade.

A comida era OK: massas com molho de tomate, uma berinjela de antepasto e pouca coisa mais. Mas o papo dos fratelli me irritava ao extremo.

Sempre que enxergava uma brecha, um dos irmãos se aproximava da nossa mesa para despejar ignorância, reacionarismo e xenofobia sobre nossas cabeças. Na última vez em que almocei lá com a mãe, o sujeito encostou e começou a falar mal dos nordestinos.

Dizia que eram preguiçosos, vagabundos, ladinos, sujos, culpou-os pelo crime em São Paulo e por todas as desgraças de sua vida miserável. Eu fiquei quieto por causa da minha mãe, mas não voltei.

O que mais me intrigava: será que o imbecile não entendia que eles, os italianos (assim como os avós da minha mãe), haviam sido os nordestinos de alguns anos atrás? Os caras apanharam a vida toda –lembro que a família do meu pai não aprovara 100% seu casamento com uma carcamana– e não aprenderam nada?

Evidentemente não. A situação atual do Brasil é uma amostra de como a população, como ente coletivo, é um ser burro e com déficit de aprendizado.

O ódio do tio do restaurante nem de longe representava exceção. Essa era a imagem que o paulistano branco, de classe média para cima, eleitor de Paulo Maluf e corja anexa, fazia dos trabalhadores migrantes. Quem é jovem hoje não sabe o tamanho do preconceito dirigido aos “baianos” no fim do século passado. Não escapa da culpa nenhuma família dessa metrópole pretensamente europeia.

Já na época do episódio do restaurante, comecinho do século, o status dos nordestinos em São Paulo estava em transição. Eles se integravam, seus filhos eram filhos da terra. Os estados do Nordeste cresciam e atraíam de volta os migrantes. Era o governo Lula –outro alvo dos impropérios do italiano (só na cabeça dele) boquirroto.

O papel antes desempenhado pelos migrantes nordestinos, do trabalho braçal com remuneração indecente, passava para outros: chineses, bolivianos, haitianos e africanos de várias partes.

A gastronomia de São Paulo tem uma dívida enorme com os nordestinos que vieram trabalhar aqui nas últimas décadas do século 20. Eles formaram a quase totalidade da mão-de-obra das cozinhas e dos salões dos restaurantes da cidade. Muitos prosperaram e abriram seus próprios restaurantes, com outros nordestinos na equipe, moldando a culinária de outros países a seu modo.

Sem os nordestinos, São Paulo não seria a capital da pizza.

Sem os nordestinos, São Paulo não seria a capital do sushi.

Você pode ser purista e comer apenas pizza e sushi feitos por italianos e japoneses. Sem os nordestinos, você ainda precisaria se aventurar na Liberdade ou no Bixiga atrás dessas comidas. Elas só saíram do nicho porque os cearenses, baianos, pernambucanos, paraibanos e outros nativos do Nordeste as espalharam pela cidade e, depois, pelo Brasil.

É uma dívida enorme, e desconfio que os credores vão tomar calote.

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