Por favor, Bolsonaro, não roube nosso leite condensado

A associação com pessoas desagradáveis, vis, perversas, repulsivas, asquerosas, abjetas, repugnantes pode contaminar objetos e palavras.

Ninguém se chama Judas, por causa de um certo Iscariotes e apesar de ter havido também o Tadeu, que era sangue-bom e até virou santo.

Ninguém quer morar na casa onde viveu um psicopata assassino em série. As roupas e tralhas pessoais desse tipo de criminoso só são aceitas por gente que ignora sua origem. Quem aí quer a boneca da menina Suzane? Ou a câmera do Maníaco do Parque?

Quando o bandido ocupa um cargo de poder, a rejeição se estende por campos menos palpáveis.

Na Alemanha e por onde migrou, a família Hitler abandonou o sobrenome. O prenome Adolf, incluindo Adolfo e outras variantes, se tornou muito raro.

A obra musical de Richard Wagner, a despeito de quaisquer predicados artísticos, é alvo de ranço porque o führer o idolatrava.

Os cartórios não registram Calígulas, Mussolinis, Maos, Saddams, Kadafis.

Nunca ouvi falar de comida ou alimento que tenha entrado em desuso por ser o favorito de um tirano.

Saddam Hussein gostava de peixe, Idi Amin Dada curtia arroz de cabrito. Pol Pot tomava sua sopinha condimentada. As pessoas continuam a comer essas coisas no Iraque, em Uganda e no Camboja.

Tudo tem uma primeira vez.

No Brasil, a repetida associação do leite condensado ao nome de Jair Messias Bolsonaro está começando a saturar.

Há quem condene o leite condensado por suas propriedades intrínsecas. É doce demais, admito. Mas dá para equilibrar se o resto da receita levar pouco açúcar.

Há o argumento de que o leite condensado –criado como substituto do leite de vaca in natura, quando não havia refrigeração artificial– é um predador exótico que ameaça a tradição da doçaria brasileira. Não considero a tese válida, pois elementos novos mudam as tradições, e isso sempre vai ocorrer. Goste ou não, o leite condensado virou ingrediente da tal cozinha de vó.

Há ainda a antipatia decorrente do uso indiscriminado de leite condensado em tudo o que é tosco e mal-acabado: barcas de açaí, paletas recheadas, doces melados de vídeos lacradores. Compartilho desse sentimento, mas ele não basta para eu abandonar o leite condensado.

Gosto muito de brigadeiro, gosto muito de pudim, às vezes me entrego a prazeres tacanhos inconfessáveis para quem posa de gourmet.

Mas a insistente aparição conjunta do leite condensado e de Jair Messias periga tornar a associação tão automática quanto a do sobrenome Hitler ao holocausto.

Por favor, Jair. Não nos roube o leite condensado da mesma forma que você roubou nossa bandeira.

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