Pamonhas pandêmicas

“Pamonha! Pamonha! Pamonha!”

A gravação se repete e se repete e se repete.

Nestes dias de isolamento, meu principal canal de contato com o mundo exterior é a audição.

Nesta época do ano, no ano passado, eu morava no oitavo andar com janelas com amplas vistas a sudeste, noroeste e nordeste. Eu observava o zumzumzum dos motoboys de entrega de uma dark kitchen na esquina de lá. Via a cachorrada de um pet hotel do Sumaré, bairro gourmetizado que preserva um quê de alternativo.

“Temos cu-rau e pamonha!”

Aqui em Perdizes, no quarto andar, a vista é bloqueada pelas copas das árvores e por outros prédios. Da janela da sala, consigo ver apenas o trecho de calçada em frente à minha portaria.

Restam-me os sons, mal captados por ouvidos de genética capenga. Meu pai brincava que era a “má audição dos Nogueira”, mas na verdade é a maldição dos Bertoni, meu tronco materno.

Ouço, à noite, o caminhão de lixo em sua marcha soluçante. Para, tritura, os lixeiros sobem na traseira batem na lataria, o caminhão anda mais uns metros e começa tudo de novo. Outros caminhões, estes de carga, chegam bem cedo para esperar a abertura do supermercado –a entrada de serviço fica no meu quarteirão, do outro lado da rua. Quando a mercadoria é refrigerada, mantêm o motor ligado –e meu sono em suspenso– até entrarem.

“…senão o carro vai embora, e a criançada chora!”

A qualquer hora do dia, as brigas da vizinha com a filha adolescente. As obras, dentro e fora do prédio. Os porteiros que insistem em usar o esguicho de alta pressão para lavar a calçada.

Ficou muito, muito mais silencioso na pandemia. Em especial, depois do aperto nas normas de distanciamento social.

Mas o carro da pamonha não falha. Nunca.

Começa no meio da tarde. Às vezes antes, logo depois do almoço. Não é de Piracicaba, é de outra cidade. O áudio, entretanto, é quase igual. Não sei das pamonhas, nunca comprei. Nunca fui fã de pamonha.

O som se aproxima, fica alto, exatamente em frente ao prédio, depois começa a se afastar, a desvanecer. Percebo que está na rua de baixo. Em seguida, sinto que se afastou um pouco mais, espera, começou a aumentar. Agora está três quarteirões acima.

Pelo som, posso localizar o carro da pamonha nas ruas da vizinhança. Ele fica até a noite, rodando devagar e tocando alto. Vai até as nove, até as dez. Todo santo dia.

Num desses dias, saí para caminhar nos arredores. O carro da pamonha fez o mesmo trajeto. Parecia que me seguia. Andava, parava, andava, parava. Tinha umas caixas térmicas no portas-malas e nenhum cliente.

“Alô, alô, moradores desta localidade!”

Fiquei obcecado pelas pamonhas. Postei no Twitter que o carro das pamonhas morava no meu quarteirão.

Outros tuiteiros responderam que ouvem a pamonha em Pinheiros. Na Pompeia. Na Vila Clementino.

Trata-se de uma frota, obviamente.

Penso no homem da pamonha. No motorista de cada um dos carros. Um coitado que passa o dia todo carregando milho verde e tenta, em vão, ganhar uns trocados. Até tarde da noite. Pelo menos cansa menos do que guiar Uber pela cidade. E gasta menos combustível.

Não! Nada disso! É tudo um esquema.

Já deitado na cama, imagino uma operação de lavagem de dinheiro encabeçada pelo mafioso Don Guido Vendimiglio Pamogna. Ele faz uma pamonha ou outra, um bolo aqui, um curau ali, ninguém compra e tudo bem, porque ele não quer vender.

No fim do dia, toneladas de dinheiro vivo de atividades ilícitas são colocadas no malote de Don Pamogna como se fossem a féria do dia dos pamonheiros volantes. Líquido como suco de milho.

“Não vendemos gato no saco de jeito nenhum!”

Já é tarde, melhor parar de pensar besteiras sem sentido. Amanhã serei acordado muito cedo pelos caminhões do supermercado.

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