A história quase secreta da colomba pascal

Sempre achei a colomba pascal um espécime curioso. Primeiro, porque é preciso uma baita imaginação para enxergar uma pomba naquele bolo em forma de “+”, de sinal de adição. Depois, porque é basicamente um panetone assado num molde diferente. Por que isso?

Vendem a colomba pascal como uma tradição ancestral da Itália na Semana Santa, mas sua história é bem mais interessante do que isso. Vamos primeiro à versão que se apega à origem medieval e devota. Abaixo, um trecho extraído do site da rede de varejo Pão de Açúcar:

“Acredita-se que a criação da Colomba pascal aconteceu após um rei italiano, chamado Lombardo Alboino, optar por encerrar uma guerra após receber de um padeiro de uma cidade inimiga um saboroso doce em formato de pomba. O doce que selou a paz era a Colomba Pascal, que se tornou um verdadeiro sucesso na Itália desde então.”

Não tenho como contestar a lenda do rei. Capaz de ser verdadeira. O trecho que incomoda aqui é o final de conto de fadas, “que se tornou um sucesso na Itália desde então”.

Para começo de conversa, não havia Itália na época medieval –o país é um estado recente, existe com governo central desde 1861. Antes, o território da Península Itálica era um mosaico de reinos. Um deles, a Lombardia, onde fica Milão –a pesquisa em sites italianos indica que o “Lombardo” do trecho acima deveria estar grafado com “l” minúsculo, pois lombardo era o adjetivo gentílico do rei Alboino.

Na lombarda Milão, maior cidade da Itália contemporânea, um padeiro chamado Angelo Motta fez muito dinheiro com panetone no começo do século 20. Hoje pertencente ao conglomerado transnacional Nestlé, a Motta ainda é a maior referência mundial no pão de frutas natalino. Vejamos o que “o site da empresa diz sobre a colomba pascal:

“Eram os anos 30 do século passado quando Angelo Motta inventou a colomba. Mais precisamente, 1936, e desde então não há uma Páscoa em que os consumidores não degustem esse doce.”

Os marqueteiros da Motta também não dizem a verdade quando afirmam que o fundador da empresa inventou a colomba pascal. A história, com as nuanças de sempre, aponta um caminho intermediário entre o conto da carochinha e o storytelling corporativo.

Há algumas lendas que mencionam o pão em forma de pombo –o símbolo cristão da paz– em diferentes pontos da Lombardia. A que louva o tal rei Alboino vem de Pavia e é do século 6.

Em 1936, quando Angelo Motta começou a produzir a pomba de Páscoa, o doce era uma tradição regional das províncias lombardas. Numa sacada genial, o padeiro começou a produzi-la em escala nacional porque era conveniente para seus negócios.

A padaria industrial Motta já fazia vários tipos de pães, bolos e biscoitos, O carro-chefe da empresa, porém, sempre foi o panetone. E o panetone é, até hoje, um produto sazonal –só emplaca na época do Natal. No resto do ano, Motta tinha equipamento ocioso e era obrigado a dispensar grande parte dos trabalhadores.

Então, Motta pôs o maquinário para funcionar no primeiro semestre e criou uma tradição novinha em folha para toda a Itália.

No Brasil, empresas de raízes italianas como a Bauducco tinham o mesmíssimo problema de sazonalidade do panetone e repetiram, com sucesso, a estratégia de Angelo Motta.

Não sei de você, mas eu acho essa história bem mais interessante do que a lenda e o blablablá marqueteiro.

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