O Brasil da fome é o Brasil da Ferrari na sala de jantar

Deu no New York Times.

Na edição impressa de sábado, 24 de abril, o Brasil é o maior destaque da capa do maior jornal dos Estados Unidos.

Sobre a chamada “Assolado pela Covid, Brasil encara uma epidemia de fome”, a foto em quatro colunas mostra, ao fundo, o Páteo do Colégio –local da fundação de São Paulo e um dos raros pontos da cidade que preservam a arquitetura colonial portuguesa.

O foco da imagem está em um homem preto, de cabelo branco, que se protege do frio com um cobertor barato, desses que se distribuem aos sem-teto. Ali era a fila de um sopão distribuído aos famintos que perambulam pelo centro (segundo o amigo jornalista Fernando Costa Netto, pela ONG Treino na Laje).

“Adolescentes esqueléticos seguram, no trânsito parado, cartazes com a palavra ‘fome’ em letras garrafais”, diz o texto. “Crianças, muitas delas fora da escola há mais de um ano, imploram por comida na porta dos supermercados e restaurantes. Famílias inteiras se apinham em acampamentos precários na calçada, pedindo leite em pó, biscoitos, qualquer coisa.”

Nada que nenhum paulistano não tenha visto em qualquer banda pelo próprio quarteirão –é assim até nos quarteirões mais abastados. Estamos atordoados, já acostumados com tamanha tragédia. Os americanos não estão. O assinante do NYT começou o fim de semana com a miséria brasileira esfregada na fuça.

Já na segunda-feira, topo no Twitter com um post a respeito de um empreendimento imobiliário de luxo em Fortaleza, com uma vaga de garagem dentro de cada apartamento.

Há um elevador para carros no prédio e, como se pode ver na planta das unidades, a Ferrari vermelha dorme entre a cozinha e a sala de jantar.

O bobalhão aqui achou surreal demais para ser verdade. Fui checar no jornal O Povo, o principal do Ceará, e lá estava o prédio dos tarados por automóveis. À venda por míseros R$ 4,2 milhões.

O presidente da construtora nega que seja um luxo extravagante. “As pessoas pensam que (…) é (…) sofisticação de quem curte carro”, afirma João Fiuza ao jornal O Povo. Sim, as pessoas pensam isso. Eu diria mais: qualquer pessoa com noção pensa que um carro na sala é o cúmulo do jeca.

Mas devolvamos a palavra ao senhor João. “Nos estudos dos prédios que visitamos, as mulheres têm usado muito para a compra de supermercado, para chegar direto com o filho da escola dentro do apartamento.”

Amigo… quem tem uma Ferrari na sala não carrega sacola de supermercado. Manda um empregado levar e buscar o filho na escola.

A mesma matéria diz que a construtora se inspirou em prédios semelhantes que já existem em Goiânia e em Belo Horizonte. Na torre goiana, o cantor sertanejo Gusttavo Lima dorme com sua Range Rover e uma moto de corrida.

Ninguém precisa ser socialista para achar as duas coisas –a epidemia de fome e o apartamento para carros– absurdas. Ninguém precisa ser comunista para entender que uma coisa só existe por causa da outra. É só ligar os pontos.

Por fim, um detalhe tragicômico: a avenida onde fica o prédio cearense se chama Abolição.

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