Comida estragada para os pobres
O governo quer vender comida estragada para os pobres. Não o disse com todas as letras, mas sabemos de quem se trata e sabemos de que essa gente é capaz.
A proposta –iniciativa da associação de supermercados, que coisa!– de flexibilizar a data de validade dos alimentos é imoral e potencialmente criminosa. Eu falo na posição de contumaz consumidor de alimentos vencidos –uma irresponsabilidade que não recomendo a ninguém.
Moro em frente a um supermercado e sou habitué da gôndola dos produtos “próximos ao vencimento”, com descontos absurdos. Na geladeira ou na despensa, vencem antes que eu os ataque.
Uso o meio século de experiência e a parca sensatez para comprar na seção do quase-lixo. Chocolate? Claro que sim: baixíssima umidade, muita gordura e muito açúcar. Bolacha? Passo, já está murcha. Leite? Não. Carne? Mas nem a pau.
Houve uma época em que o mercado da minha rua trazia excelentes queijos suíços, todos caros demais para o meu bico. De quando em quando, o preço baixava para menos da metade –vencimento chegando– e eu me abastecia como um nababo.
A queda livre do real sumiu com esses queijos, inviáveis até para o burgo de Perdizes. Agora eu ralo para comprar queijo minas e olha lá.
Meu comportamento é uma escolha individual. Eu assumo a responsabilidade e o risco dessa escolha.
Quando o governo cogita relaxar os critérios da validade dos alimentos no mercado, ele impõe a escolha entre comer e passar fome. Pega (em tese) a responsabilidade da decisão, mas atira o risco no colo do consumidor. Não é o Guedes que vai ter intoxicação.
Sou favorável à redução do desperdício e à flexibilização da validade quando embasada em sólidos argumentos técnicos. Mas tenho três motivos para julgar que, no Brasil de 2021, fazê-lo só ampliaria a tragédia humanitária.
Motivo 1: a piada do critério técnico. Só um perfeito otário para acreditar que esse governo aí agiria de acordo com a ciência no respeito aos padrões sanitários.
Ele não o fez na pior pandemia da história. É real o risco da legalização da venda de comida podre.
Motivo 2: a queda dos preços é conversa mole para boi dormir. A passagem aérea não ficou mais barata com a cobrança da bagagem. O combustível na bomba não acompanha a baixa do preço na refinaria.
A proposta da ampliação da validade atende ao lobby do varejo e a mais ninguém. Serve para otimizar a eficiência da operação –em português das ruas, aumentar os lucros.
Motivo 3: a miséria interessa ao governo. Vender ou doar comida passada é um remendo vagabundo para evitar a mortandade maciça por inanição. Não contribui em nada para reduzir a pobreza, algo que jamais passaria pela cabeça de Bolsoguedes.
Nunca foi tão escancarada a intenção de aprofundar a desigualdade e petrificar a imobilidade social. Só não pode deixar o faminto morrer: alguém precisa trabalhar para os ricos.
Então veio a solução final, digo, genial: colocar comida podre, mas nem tanto, na mesa de quem não tem escolha.
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