Café, pimenta e vacina

Um dia, Lourdes perguntou se eu gostava de pimenta. Falei que sim, claro. Na semana seguinte, ela trouxe um pote plástico, desses de sorvete, cheio de pimentas.

“Isso dá feito mato atrás da minha igreja.”

Foi aí que eu soube que Lourdes era evangélica. Ela trabalhava calada e conversava pouco. Nunca veio me falar de Cristo, do pastor, nunca passou lição de moral e não parecia se incomodar com os rastros de consumo de álcool na casa. As tatuagens sinalizavam para um passado menos devoto.

Lourdes tampouco escutava música gospel enquanto fazia a limpeza. As poucas palavras e a ausência de hinos de louvor, entretanto, não significavam silêncio nos dias de faxina. O celular de Lourdes não parava de apitar. Atividade intensa nos grupos de zap, imagino.

Contratei os serviços de Lourdes no final de 2019, por indicação de um amigo. Quando a pandemia chegou chegando, achei melhor que não viesse. Paguei-lhe algumas diárias sem trabalhar, mas acabei saindo do apartamento do Sumaré… não fazia sentido contratar faxina para uma casa que nem existia mais.

Quando me assentei de volta em Perdizes, chamei-a de volta. Agora quinzenalmente, pois estava (estou) duro e atolado em dívidas.

Lourdes reclamava do café que eu passava, fraco demais para ela. Quando eu emergia do quarto de dormir, ela já tinha enchido a garrafa térmica com espessa substância negra.

Um mês atrás, Lourdes quebrou uma jarra de vidro aqui em casa. Duas semanas depois, trouxe uma novinha para repor o sinistro. Eu recusei o presente.

Naquele dia, eu estava particularmente alegre. Havia sido vacinado na véspera. Queria puxar conversa.

“Lourdes, você já se vacinou?”

“Não.”

“Quantos anos você tem?”

“Cinquenta e sete.”

“Eu tenho 51 e já pude tomar a vacina. Corre atrás disso, mulher.”

Então saí para bater perna, minha rotina nos dias de faxina em tempos de pandemia.

Ontem Lourdes voltou. Assim que acordei, fui à cozinha.

“Bom dia, Lourdes. Você fez café?”

“Ainda não.”

“Tudo bem. Já vacinou?”

“Não.”

Percebi que ela evitava me fitar.

“Vacina logo, Lourdes.”

“Não vou tomar isso, não.”

“Como assim? Você não acredita na vacina?”

“Não.”

“Lourdes, isso é muito sério. Essa coisa tá matando gente. Se você insistir em não se vacinar, vou precisar dispensar o seu serviço.”

“Tudo bem.”

“Tudo bem, o quê?”

“Me dispensar”.

Assim se foram a Lourdes, o café forte e as pimentas do quintal da igreja.

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