A agonia da Vila Madalena boêmia

O possível fechamento do bar Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, fez jorrar nas redes sociais uma torrente de memórias saudosistas.

Pessoas da minha geração e do meu convívio têm episódios com o cantor australiano, com o cineasta recifense, com o garçom parceiro, com o escritor marginal, com o dramaturgo maldito. Não consigo me lembrar de nada tão descolado e glamuroso.

Minha recordação mais marcante do Merça é de uma sexta-feira no início dos anos 2000: o povo da redação baixou em peso no boteco, emendou uma mesa gigante e secou dezenas de cervejas.

Uma amiga, bêbada como todos no recinto, atirou na mesa vizinha uma bolinha feita de guardanapo molhado e palitos de dente. Seguiu-se uma briga que quase tomou proporções trapalhônicas, sem feridos.

Voltei à Merça há poucas semanas, com um amigo –marido, aliás, da mulher da bolinha. Fomos lá por causa da boa ventilação (as mesas ficam numa enorme varanda), mas pode não ter sido a melhor ideia numa das noites mais frias do ano.

À parte a friaca e a pandemia, estava evidente que a Mercearia perdera o tchan. Muito pouco foi mexido na paisagem rústica de prateleiras com livros e produtos de limpeza à venda. Mas o fervo intelectual da velha Merça virou peça de museu. É natural que seja assim.

O declínio (e iminente queda) da Mercearia São Pedro tem enorme força simbólica na agonia da Vila Madalena como bairro boêmio. É um processo que já se arrasta por décadas.

Até a década de 1980, ir à Vila era uma expedição noturna muito alternativa. Já existiam alguns bares de alma riponga que estão lá até hoje, como o Empanadas, na rua Wizard, e a própria Merça.

Na década seguinte, as ruas estreitas se tornaram o principal polo de diversão etílica em São Paulo. A Vila –não qualquer bar em particular– era o destino. Marcava-se num boteco e, caso ele estivesse fechado, caído ou cheio demais, era só caminhar até outro.

De repente, todo mundo na cidade queria ir à Vila Madalena. O perfil dos bares se aburguesou e se aproximou daqueles da outra Vila, a Olímpia. O bairro virou nome de novela da Globo. Pipocaram as torres de apartamentos e de escritórios. Vieram os Carnavais de superlotação e xixi nos quintais dos sobrados remanescentes.

A Vila cresceu além do ponto e, por isso, perdeu o charme que atraía os pássaros da noite. Ainda estão lá muitos lugares que adoro –cito de cabeça o Martin Fierro, o Hirá e o Guarita–, mas já não existe o tal bairro boêmio.

Isto não é lamúria de tiozão, “no meu tempo que era bom”. No meu tempo era tão bom quanto agora –ou tão ruim quanto, a depender do ponto de vista.

A diversão noturna apenas mudou de endereço, concentrada em algum bairro ou pulverizada. Não sei bem onde, pois isso saiu do meu radar de interesses. É a idade.

A decadência da Vila importa de verdade para quem vive, trabalha ou tem negócio por lá. Para o boêmio, o fechamento de um bar é só uma pontada que dói na memória afetiva.

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