Receita de bolo para amansar milico, nunca mais

Venho aqui prestar o meu mais profundo respeito às receitas.

Uso o termo no sentido lato, não restrito à culinária. Uma receita é uma fórmula testada e aprovada. Um caminho trilhado até se tornar seguro. Um plano de voo que não ponha tripulação nem passageiros em risco.

Receitas são obras de humanos, portanto falhas. Todo texto requer interpretação, o que cria dupla possibilidade de erro: na construção da mensagem e na leitura.

O método acadêmico cerca essa fiação solta para tecer receitas de interpretação una e inequívoca, como as fórmulas laboratoriais. Um pouco mais perto da cozinha, as receitas de cerveja têm medidas e etapas que reproduzem exatamente, em qualquer ponto do mundo, uma bebida da Alemanha, da Bélgica, da Inglaterra ou de Agudos.

Algo semelhante ocorre na confeitaria, ramo da culinária em que até os ovos são medidos em gramas para a obtenção de pães exemplares, bolos fofos e doces replicáveis.

Para que a prática da receita corresponda à teoria, porém, é preciso disciplina. Disciplina é uma coisa chata, mas necessária em muitas situações.

O receituário das comidas salgadas é um tantão mais caótico, já que envolve ingredientes frescos, com oferta irregular, e tradições gastronômicas que se contradizem.

Posso colocar alho (cacófato proposital) na carbonara? Não? Quem disse que não? Se eu gosto, é claro que posso colocar alho. Azar dos romanos.

Para subverter uma receita, contudo, melhor conhecê-la. Caso contrário, é arrotar ignorância.

Entre 2000 e 2002, eu fui editor de uma revista de culinária e, entre minhas atribuições, estava padronizar todas as receitas que chegavam a cada mês. Foi aborrecido e lindo.

Chefs sabem cozinhar, nem todos sabem escrever bem. Eu era o atravessador, o tradutor. Muitas receitas demandavam idas e vindas e telefonemas e e-mails mil. Aprendi à pampa sobre cozinha nessas conversas.

Quando comecei a escrever na Folha, tinha certo ranço dessa abordagem clássica do jornalismo culinário, com receitas para a família no fim de semana. Queria fazer algo diferente. Acho que faço.

Mas chegou a hora de expor as nádegas na janela com minha nova coluna, as Receitas do Marcão, que estrearam nesta sexta (10) no F5 e no Agora São Paulo.

Leio xingamentos e esculachos sempre que o tema da coluna Cozinha Bruta se desvia, ainda que por linhas lógicas claras, da gastronomia. “Fale de feijão, não fale de fuzis.” “Já há outros setecentos mil comentaristas de política mais tarimbados do que você.”

Para essas pessoas, temos agora um canal dedicado exclusivamente às Receitas do Marcão. Pode até rolar receita de bolo, sei lá.

Com todo o respeito, as receitas têm de ficar onde sempre estiveram, nas colunas de culinária. Os acontecimentos recentes são preocupantes. Que nenhum gorila fardado venha exigir receita onde havia algo que pudesse melindrar qualquer autoridade.

Nunca mais.

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