O banquete dos ossos e pelancas imundas

Você sabe o que é tonkotsu ramen?

Se sabe, parabéns: faz parte do meu clubinho de gourmets, gourmands, foodies e pessoas interessadas por gastronomia. Como presumo que a maioria nem faça ideia do que é isso, explicarei.

Ramen é a grafia usada internacionalmente para designar aquilo que no Brasil se chama de lámen –uma sopa de macarrão à moda japonesa que, na versão instantânea de supermercado, é ninguém menos do que o miojo.

Já o ramen preparado “comme il fault” faz o foodie atravessar a cidade –quiçá o planeta– para comparar nuances sensoriais do ovo cozido, do macarrão e, principalmente, do caldo.

No Japão, existem múltiplas formas de preparar o caldo do ramen. Hakata, na ilha de Kyushu, especializou-se no tonkotsu –em tradução literal, osso de porco. Os ossos são cozidos por horas com vegetais e temperos, até se obter uma sopa de aparência leitosa e sabor intenso.

Nos restaurantes de São Paulo, uma boa tigela de caldo tonkotsu, com macarrão e seus acompanhamentos, custa entre quatro e cinco dezenas de reais.

Tudo isso para demonstrar que osso nem sempre é dejeto ou subproduto na alimentação. Outras escolas culinárias, notadamente a francesa, também usam ossos para extrair sabor para caldos e bases para molhos.

O que vimos esta semana no Rio é algo completamente diferente.

No bairro da Glória, zona sul, um caminhão de ossos e pelancas distribui para gente pobre tudo aquilo que açougues e supermercados julgaram ser lixo. A imagem das pessoas garimpando nos restos de animais é tenebrosa, mas ainda bem que fotografia não tem cheiro.

Na esquina da minha rua há um açougue. A porta lateral, usada para carga e descarga, às vezes recebe um caminhão para recolher ossos e sebo. O odor é nauseabundo. A aparência é repulsiva.

Esses dejetos são usados para fabricar ração animal e sabão. Como não é destinado à alimentação humana –e será submetido a processos industriais pesados–, o material é armazenado e transportado sem grande rigor higiênico.

Há moscas por todo lado. Imagino que deva haver outros bichos. Sem refrigeração, os retalhos de carne e gordura começam a apodrecer.

É isso que sobra para o jantar dos sem-teto (e com-teto, mas sem dinheiro para comprar comida) que disputam a carga do caminhão das pelancas.

Uma vez, no final dos anos 1980, um caminhão carregado de carne caiu dentro do rio Tietê em seu trecho mais imundo, na cidade de São Paulo. Moradores de uma favela nas proximidades mergulharam para saquear os bifes temperados pelo esgoto da região metropolitana.

Em casa, lavaram a carne, passaram sal, alho, óleo, fogo e mandaram goela abaixo. Eu achei nojento, você deve ter feito careta, mas nada é muito asqueroso quando você tem fome de verdade.

Depois do incidente no Tietê, melhoramos. Agora voltamos a piorar e estamos sem freio, despencando ladeira abaixo. Sempre dá para piorar, reconhece o próprio Jair. Que as pelancas do açougue não se tornem uma lembrança saudosa para os brasileiros.

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