Lagosta para os pobres
O acará só queria camarão.
Todos os outros peixes do aquário comiam ração seca em flocos, mas o acará-disco não dava a menor pelota para ela.
Para interromper a greve de fome do ciclídeo, minha mãe sugeriu que lhe déssemos camarão. Funcionou.
O acará de paladar fino virou piada na minha casa –eu tinha 12 ou 13 anos na época. O impacto da dieta do peixe no orçamento doméstico era, contudo, desprezível: ele comia alguns pedacinhos por dia de camarão miúdo, do tipo mais barato.
O camarão como alimento de peixes de aquário é, por sinal, muito comum. Tem até um tipo que você cria num tanquinho à parte, para oferecer vivo aos lebistes e betas de estimação.
É a artêmia, gênero endêmico de lagos salgados continentais. São crustáceos minúsculos, tão pequenos que não dá para examinar um indivíduo a olho nu. Em bando, parecem uma nuvem de mosquitos aquáticos.
No século passado, ovos de artêmia eram vendidos sob o nome “kikos marinhos”, como se fossem gerar diminutas criaturas com inteligência superior. Uma obra-prima da empulhação. Mas voltemos à ração.
Tem camarão também em algumas rações de gato. Camarão e atum, quase uma barca de sushi para os bichanos.
Gato persa pode comer camarão. Peixe de aquário pode comer camarão. Só pessoas pobres não podem comer camarão.
Não surpreende ninguém a indignação ante a foto de Wagner Moura comendo camarão num evento dos sem-teto. É só mais um chilique de preconceito e ignorância da elite jeca do Brasil.
Essa turma acha ok dar ração assinada pelo Erick Jacquin para o lulu-da-pomerânia, mas sobe nas tamancas quando uma doméstica compra passagem de avião.
Acha natural celebrar a especulação financeira com uma vaca amarela de fibra de vidro enquanto desempregados reviram o lixo atrás de ossos.
Aliás, acha ótimo que a fome tenha feito baixar o custo do trabalho braçal. Tudo bem que a inflação e o câmbio dobraram o preço do vinho: é apenas um percalço na restauração do Brasil dos homens de bem, vamos beber a isso.
Esse pessoal acha que a Bahia é o Quadrado de Trancoso e que acarajé é uma iguaria exótica para dias de festa.
Mal sabe essa gente que o camarão defumado, mirrado e cascudo que vai no acarajé é vendido pela bacia nas feiras de Salvador.
Camarão é um bicho carniceiro, coprófago, parece uma barata que passa a vida nadando em pé. Não sei por que tanto fetiche. Porque a carne é deliciosa, talvez?
Nada irrita mais o tutor de lulu-da-pomerânia do que um pobre se alimentando bem e com gosto. Daí achar um acinte que a refeição servida na ocupação do MTST incluísse camarão.
Um efeito positivo do episódio é a reação contra o absurdo. Uma galera arrecadou doações para promover uma camarãozada (sim, inventei a palavra) numa ocupação do Jardim Iguatemi, zona leste profunda. Vai ser neste domingo (21).
É provocação? Evidente que sim!
Que sirvam lagosta para os pobres da próxima vez.
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